Calote de precatórios e venda de sentenças

Sentença é a qualificação jurídica de um caso. Quem assim a definiu foi Hegel, o filósofo alemão. Nas palavras de Pontes de Miranda “é a prestação jurisdicional, objeto da relação jurídica processual”.

É possível alinhar outras definições. Todas desaguariam, porém, na fórmula lacônica de Hegel. Longo e acidentado é o trajeto percorrido pelo autor da ação, até conseguir sentença definitiva com trânsito em julgado. A decisão não vem de uma vez. É o processo que se converte em veredito, escreveu Franz Kafka.

A ciência do processo exige alta especialização. Gabinetes de juízes, bibliotecas de faculdades de direito e escritórios de advocacia não prescindem da presença de tratados de processo civil escritos por renomados juristas. O traço comum entre obras dessa natureza reside no fato de se limitarem ao comentário e à interpretação de cada dispositivo. Ignoram o lado humano inerente aos processos. São alheios ao sofrimento, às expectativas, às frustações que pairam sobre autor e réu.

Franz Kafka

O volume de ações em andamento ou de processos de execução é assustador. O Relatório da Justiça em Números, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, divulgado pela internet, revela que “O Poder Judiciário finalizou o ano de 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, que aguardavam alguma solução definitiva. Tal número representa a redução no estoque processual, em relação a 2018, de aproximadamente 1,5 milhão de processos em trâmite, sendo a maior queda de toda série histórica contabilizada pelo CNJ, com início a partir de 2009”.

A redução do volume de ações é fato positivo. Não basta, contudo, para resolver o desafio da morosidade e do congestionamento na fase de execução, quando o comando abstrato da sentença será convertido em moeda. É na execução que se localiza “o principal fator de morosidade do Poder Judiciário”, diz o Relatório do CNJ.

O artigo se propõe discutir como a morosidade e o congestionamento provocaram o aparecimento de rendoso mercado negro, no qual a mercadoria de troca é a sentença judicial. De algum tempo para cá aumenta o número de escritórios especializados neste ramo marginal de transação. Venda o seu precatório pelo melhor valor, dizem mensagens publicadas na  internet.

A validade do negócio é assegurada pela Constituição Federal. O tema, entretanto, ultrapassa a esfera jurídica para ingressar na esfera da ética, frágil membrana do qual a lei depende para ter legitimidade. O Art. 100, § 13, da Lei Fundamental prescreve: “O credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º”. O mafioso ramo de comércio, uma espécie de agiotagem a reverso, não se limite à compra de precatórios, pois já se faz comum negociar sentenças da Justiça do Trabalho.

O Relatório do CNJ não informa o tempo médio de duração dos processos. Do último Relatório Geral do Tribunal Superior do Trabalho, extraio o seguinte parágrafo: “O tempo médio entre o ajuizamento de uma ação e o seu encerramento demonstra que, no TST, esse prazo foi de 1 ano, 5 meses e 26 dias; nos Tribunais Regionais do Trabalho, de 10 meses e 7 dias e, nas Varas do Trabalho, de 7 meses e 28 dias na fase de conhecimento e de 4 anos, 2 meses e 23 dias na fase de execução.”

O Relatório Geral do Tribunal Superior do Trabalho, informa, ainda, que “As execuções iniciadas somadas às execuções pendentes dos anos anteriores – pendentes de execução e em arquivo provisório – totalizaram 3.530.836 processos”. O mesmo documento também afirma que “Ao final de 2019, a dívida trabalhista em precatórios totalizava R$ 14.185.741,664,53; havia 107.036 precários pendentes de quitação, dos quais 58.936 (55,1%) estavam com prazo vencido.” (negritei).

Quando o réu é pessoa natural ou jurídica de direito privado, a execução se inicia pela penhora eletrônica, instrumento ágil à disposição do Juízo. Contra a Administração Pública é emitida burocrática Carta Precatória, com pedido de inclusão da dívida no orçamento. O calote dos precatórios, patrocinado pelo ministro Paulo Guedes e avalizado pelo Congresso Nacional, é medida vergonhosa, comprometedora do governo Jair Bolsonaro. Da combinação entre morosidade processual e calote dos precatórios nasce a compra e venda de sentenças, que atinge a autoridade do Poder Judiciário.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

Deixe seu comentário