Os trágicos acontecimentos da semana antecedente, que envolveram uma criança de 10 anos violada por um membro de sua família e que redundou em uma gravidez indesejada, fez-me trazer à memória uma das performances realizadas pela artista Yoko Ono, nos anos 60.
E falo dela pela absoluta incapacidade de falar diretamente dos fatos reais, dada a angústia que o assunto me causa.
Faço uso da força das imagens, da força de uma ideia, para refletir sobre o absurdo, sobre o inconcebível, sobre o intolerável. Uma cena fictícia, para ilustrar com nitidez e força simbólica, as tragédias da vida e da realidade.
No imaginário popular, Yoko Ono é conhecida apenas como a esposa do ídolo John Lennon, um dos integrantes da lendária banda inglesa “The Beatles”.
Yoko, entretanto, é considerada uma das grandes artistas de vanguarda dos anos 60, criadora de várias performances icônicas no mundo artístico.
Na performance conhecida como “Cut Piece”, encenada pela primeira vez em 1964, Yoko aparece sentada em um palco, tendo o publico à sua frente. No palco, apenas ela e uma tesoura. Os espectadores teriam sido previamente orientados de que poderiam fazer uso da tesoura para recortar ou rasgar, se assim o quisessem, algum pedaço da roupa usada pela artista.
E o esperado aconteceu.
Inicialmente tímidas, algumas pessoas da plateia se dirigiam ao palco e cortavam diminutos pedaços da vestimenta da artista, a qual permanecia impassível e imóvel, a despeito da manipulação de seu corpo.
Aos poucos, contudo, um após outro, os espectadores vão ganhando segurança e sentindo-se à vontade para cortar mais e mais pedaços da roupa da artista. Paulatinamente, a performance ganha uma certa tensão, uma muda tensão. A roupa de Yoko continua sendo cortada aos pedaços, com a participação de alguns espectadores que, ainda mais ousados e visivelmente animados, deixam a denotar um certo prazer no ato de rasgar, agora de forma incisiva, as vestimentas da artista, chegando ao limite de cortar as alças de sua roupa íntima.
A cena é impactante. Para mim, muito impactante. O vídeo está disponível na internet, para quem se interessar. Basta jogar no Google “Yoko Ono” ou “Cut Piece”.
Na performance, os espectadores participam ativamente do ato violador, pois entram na própria concepção da obra, fazendo parte de seu significado.
Retirando-se as várias questões estéticas e políticas que são passíveis de se extrair de tal performance e os seus diversos e possíveis significados, amplamente explorados a seu tempo, quero me deter hoje à ligação que faço de tal performance com o caso relatado.
São autoevidentes as correlações com aspectos ligados à misoginia, machismo, violência, violação sexual, poder, exploração do corpo levada ao seu limite, passividade, desamparo, impotência, espanto, fragilidade, crueldade, sadismo.
Não foi diferente da vida real. Todos os aspectos atribuídos à performance foram igualmente visualizados na nossa tragédia particular, que se repete a cada dia em milhares de lares brasileiros. A violência física seguida pela indissociável violência moral. Acrescida por mais uma violência moral, agora perpetrada por fanáticos religiosos que deram continuidade à barbárie, conforme observamos da manifestação que fizeram à porta do hospital onde a criança estava internada.
Na “peça”, a fúria que se percebe no ato violador se contrapõe à passividade da artista, que permanece imóvel e cinge-se a segurar com as mãos os seios deixados desnudos pelo ávido espectador.
Na realidade, por igual, a passividade e impotência da vítima. O desamparo que emana de toda a tragédia.
Agora, não mais uma roupa. Mas uma criança. Cortada aos pedaços.
Quase cinquenta anos depois, a obra de Yoko continua atualíssima. Em 2017, já com mais de 80 anos, a artista ganhou uma exposição retrospectiva no Brasil, realizada pelo Instituto Tomie Otake. Entre suas obras, destaca-se uma instalação onde se discute a violência sexual das mulheres. Yoko teria convocado mulheres brasileiras que foram vítimas de abuso sexual e as incentivado a publicar a experiência, de forma anônima, junto com uma foto de seus olhos.
Sabemos que amálgama entre vida e arte era uma das intenções assumidas explicitamente pela artista.
Quisera eu pudéssemos todos recompor cuidadosa e delicadamente a vida dessa criança e juntar os cacos dessa nação dividida e despedaçada formando, ao menos, um mosaico.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada