Acaba de vir à luz o livro A Transição, escrito pelo jornalista José Augusto Ribeiro (Krauss Editora, Campinas, 2021). Relata o papel desempenhado pelo presidente José Sarney como principal protagonista da restauração do Estado Democrático de direito, após vinte anos de regime militar.
Quis a vontade de Deus que eu testemunhasse e participasse do período que se tornou conhecido como “de transição”.
Cheguei à Brasília na manhã de 14 de março de 1985, em companhia da família, com o objetivo de assumir o cargo de Ministro do Trabalho a convite do presidente Tancredo Neves. Boa parte dos brasileiros devem se recordar do que então se passou.
Acometido de grave moléstia, só conhecida pelo círculo familiar mais íntimo, Tancredo Neves foi levado ao Hospital de Base por volta de 21:00 do mesmo dia 14 e submetido a delicada cirurgia. Não mais se recuperou. Faleceu em 21 de abril, dia do Mártir da Independência. Como vice-presidente José Sarney respondia interinamente pela presidência da República, até ser definitivamente empossado no dia 22.
A extinta revista Manchete, edição de 4 de maio de 1985, trazia artigo de Murilo Melo Filho, cujo primeiro parágrafo dizia: “Na medida em que 130 milhões de brasileiros se vão acostumando penosamente ao desaparecimento do Presidente Tancredo Neves, cresce de significação e importância a pergunta: – E agora? O que será do Brasil e dos brasileiros?” Foi sob tal estado de perplexidade, frustração e desalento que José Sarney assumiu o comando do País. Nos meses que se seguiram ao desenlace, éramos 130 milhões de céticos e desorientados.
Deputado estadual pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, fora convidado por Tancredo Neves para chefiar o Ministério do Trabalho, “o cargo politicamente mais importante do futuro governo, na opinião de industriais de São Paulo”, isto porque “a classe trabalhadora, desperta no campo e reatiçada na cidade, está com sua quota de privação e renúncia inteiramente zerada: nos últimos anos de ‘ajustamento’ ela perdeu mais que o salário real, também o emprego “. O registro havia sido lavrado pelo falecido jornalista Joelmir Betting no jornal O Globo, edição de 9 de janeiro.
Os primeiros três anos de governo foram os mais tormentosos da História da República. Com a legitimidade contestada por setores inconformados do PMDB, a oposição pérfida do Partido dos Trabalhadores (PT) e do seu braço sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT), cujos chefes lhe não davam trégua, José Sarney jamais perdeu o rumo, o equilíbrio e a serenidade.
Como político experiente tinha exata noção da liturgia e das dificuldades do cargo. Sabia que sofrer oposição é inevitável no regime democrático. Respeitava a liberdade de imprensa. Tolerava ataques venenosos e injustificáveis. Por sua determinação tentei em duas ocasiões celebrar pacto social entre patrões e trabalhadores. Infelizmente, o objetivo do governo não foi compreendido. Acompanhei a construção do Plano Cruzado, quando foi instituído o seguro-desemprego, legítima aspiração das classes trabalhadoras.
No mesmo Plano foi introduzido o gatilho salarial, instrumento de defesa dos salários contra a inflação. José Sarney prestigiou a Justiça do Trabalho. Criou Tribunais Regionais do Trabalho, entre os quais o de Campinas, e dezenas Juntas de Conciliação e Julgamento, hoje Varas do Trabalho. Sofreu milhares de greves políticas ou reivindicatórias. Anistiou dirigentes sindicais punidos pelo regime de exceção. Mais de 1.500 pedidos de reconhecimento sindical foram atendidos.
O que marca, porém, definitivamente, o desempenho do presidente José Sarney não foram as realizações materiais, mas a paciente capacidade de aplainar o caminho de passagem do autoritarismo para o Estado de Direito democrático. Ao encerrar o mandato em 1990 o País dispunha de nova Constituição e se encontrava preparado para eleger diretamente o sucessor na presidência da República.
Como escrevi em breve texto, encontrado no livro editado para homenageá-lo pela Câmara dos Deputados, “O presidente José Sarney completa 90 anos coroado pelo reconhecimento do relevante papel exercido em momento decisivo para a reconstrução da democracia. À medida que o tempo passa, paixões extremadas se dissipam e a opinião pública julga com isenção e equilíbrio, mais nítida se revela a imagem do estadista”.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Superior do Trabalho