Em apenas duas semanas de abril o país mudou após o STF confirmar a possibilidade da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio da Silva. Em 15 de abril, por 8 a 3 a Corte chancelou a decisão do Ministro Edson Fachin sobre a incompetência de Sergio Moro. Uma semana depois formou-se a maioria para declarar o mesmo ex-juiz suspeito e faccioso no julgamento do tríplex do Guarujá.
A ressurreição da candidatura desencadeou uma onda de críticas ao petista, notadamente em jornais impressos. As expressivas manifestações em repulsa a Bolsonaro do dia 29 de maio foram minimizadas por opções editoriais incompreensíveis. Exceção feita à “Folha de São Paulo” que deu destaque aos atos. Atacar o adversário mais competitivo contra o capitão e esconder protestos são indicadores da síndrome de Estocolmo, a expressão de empatia pelo agressor.
O estágio atual de decomposição do Estado brasileiro desaconselha priorizar o debate unicamente a partir do viés partidário-ideológico. Aqueles que sobreviverem ao morticínio, patrocinado pelo flagelo Bolsonaro, ainda terão tempo de resgatá-lo e exercitá-lo no futuro. A premência, agora, se dá em torno da preservação de vidas, causas humanitárias e do impedimento de novos retrocessos civilizatórios. O antagonismo do momento está entre a ciência e a crença, vida e morte, conhecimento e obscurantismo, luz e trevas, civilização e barbárie, a verdade e a mentira. Opções elementares que opõem o bem ao mal.
Ser a antítese do caos, das anomalias golpistas, dos ataques institucionais, do genocídio, do descalabro administrativo, da ruína econômica, da fome e do desemprego é uma imposição civilizatória, não uma mera escolha política ou filosófica. Em que pese a livre orientação ideológica dos veículos de imprensa, a realidade dramática do país e da mídia recomenda o reexame da intensidade das hostilidades. Lula teve uma convivência democrática com a mídia apesar das bravatas regulatórias da época. Na história do regime democrático, nunca a imprensa brasileira esteve tão sistemicamente ameaçada como agora. O verdadeiro satã da mídia chama-se Jair Bolsonaro.
O mapeamento da organização não-governamental “Repórteres Sem Fronteiras” relativo ao ano de 2020, apontou que o capitão e os herdeiros da barbárie fizeram 469 ataques a jornalistas e veículos de imprensa durante o ano passado. A radiografia faz parte de um balanço sobre agressões à imprensa feitas por autoridades públicas. Ao todo, a ONG registrou 508 ações beligerantes contra a mídia em 2020. Os principais porta-vozes do método nazista de intimidação foram os 4 cavaleiros do apocalipse: Jair Bolsonaro, com 103 ataques, Eduardo Bolsonaro, 208 agressões, Carlos Bolsonaro com 89 registros e Flávio Bolsonaro com 69. Apesar de tantas hostilidades o capitão, devoto de realidades paralelas, insiste em preconizar um falso respeito aos veículos e jornalistas.
Além da belicosidade explícita da família, também foram anotados ataques partindo de 50% dos ministros da seita bolsonarista. Os alvos mais recorrentes, a exemplo do que faz a tropa de choque do governo na CPI, são jornalistas mulheres. Elas foram as que mais sofreram ataques pessoais. Foram 34, entre ofensas, ameaças e até impedimento de cobertura. Contra jornalistas homens, foram 29 ataques pessoais. Segundo a ONG, o Brasil ocupa agora o vergonhoso 107º lugar no ranking mundial de liberdade de imprensa. Noruega, Finlândia e Dinamarca estão nas primeiras posições. O Brasil caiu duas posições em relação a 2019.Até o final do mandato novos tombos nos aguardam envolvendo a liberdade de expressão, alicerce das democracias.
O sobrenome “Bolsonaro” esteve presente na maioria dos ataques à imprensa registrados no ano passado. Houve um aumento de 167% de Violações à liberdade de expressão em relação a 2019, segundo o dado divulgado recentemente pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. O Brasil perdeu quatro posições no ranking de liberdade de imprensa. Pela primeira vez o país entrou na lista de países em que a situação da imprensa é considerada difícil. Apesar das estatísticas, o cinismo insiste em uma fantasiosa convivência amistosa com a imprensa. Eis o que ele pensa: “O certo é tirar de circulação, não vou fazer isso porque eu sou um democrata, Globo, Folha de S. Paulo, Estadão, O Antagonista… que são fábricas de fake news”.
O relatório anual sobre Direitos Humanos dos Estados Unidos, divulgado em março de 2021, pelo Departamento de Estado, classificou uma série de preocupações sobre o Brasil. O país é um dos quase 200 analisados pelo documento que destaca a deterioração dos direitos humanos no ano passado. No caso brasileiro, as citações vão desde “assassinatos ilegais ou arbitrários cometidos pela polícia” e “atos generalizados e corrupção” e “violência contra jornalistas” – diretamente relacionada ao presidente Jair Bolsonaro. Mais um dado, mundialmente conhecido, que registra a jihad do clã Bolsonaro contra a liberdade de imprensa.
Um dos casos sublinhados pelo relatório norte-americano é do repórter do jornal “O Globo” que questionou o capitão das razões de um depósito de R$ 89 mil feito por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, Michele Bolsonaro, ainda sem qualquer explicação. A reação colérica do capitão, ameaçando o jornalista de agressão física, diz muito sobre a recusa em explicar o inexplicável, em 23 de agosto de 2020. Inicialmente Bolsonaro disse que não iria responder. Depois ameaçou, cercado de seguranças: “Eu vou encher a boca desse cara na porrada”. Na sequência emendou: “Minha vontade é encher tua boca na porrada”.
Em 18 de fevereiro de 2020, em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro fez um comentário de cunho sexual sobre a repórter Patrícia Campos Mello, do jornal “Folha de S.Paulo”. “Ela queria dar o furo”, disse o presidente diante de um grupo de desmiolados aglomerados no cercadinho circense do Alvorada. Após uma pausa, Bolsonaro concluiu: “A qualquer preço contra mim”. A fala ocorreu após um ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp dizer, sem apresentar provas, que a jornalista teria tentado “se insinuar” sexualmente para ele em busca de informações. A juíza Inah de Lemos Silva Machado, da 19 Vara Cível de São Paulo condenou o amoral a indenizar a jornalista em R$ 20 mil pelo comentário de cunho sexual.
Dois dias após profissionais do jornal “O Estado de S. Paulo” serem agredidos fisicamente em uma manifestação favorável a Jair Bolsonaro em Brasília, em maio de 2020, o presidente mandou repórteres calarem a boca durante um pronunciamento em frente ao Palácio da Alvorada. Bolsonaro se irritou ao ser questionado por jornalistas se ele havia pedido a troca do superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro. “Cala a boca, não perguntei nada”, respondeu. Repórteres insistiram na pergunta, e ele repetiu: “Cala a boca, cala a boca”. Como bem destacou a ministra Carmen Lúcia em dos votos no STF, o cala boca já morreu e a boca que, em breve, estará silenciada pela voz da democracia será a do capitão.
No sinuoso episódio envolvendo a morte da vereadora Marielle Franco, o capitão voltou a ameaçar. Segundo o depoimento do porteiro do condomínio onde mora Bolsonaro, Élcio de Queiroz, um dos suspeitos de participação no crime, lá esteve no dia do ataque e disse que visitaria Bolsonaro, mas se dirigiu à casa de Ronnie Lessa. O porteiro afirmou ter telefonado à casa de Bolsonaro para avisar que o visitante tinha ido para outra residência, quando teria ouvido do interlocutor que ele “sabia para onde ele (Élcio) tinha ido”. O porteiro disse acreditar que a voz no telefone era de Bolsonaro. Após a reportagem, Bolsonaro atacou: “É uma canalhice o que vocês fazem, TV Globo”. Bolsonaro já ameaçou várias vezes não renovar a concessão da Globo em 2022: “Não vai ter jeitinho para vocês nem para ninguém”. “Essa imprensa lixo chamada Globo. Ou melhor, lixo dá para ser reciclado. Globo nem lixo é, porque não pode ser reciclada”, ameaçou novamente em 30 de abril de 2020.
Em 4 de março de 2020, Bolsonaro transmitiu um vídeo no qual o humorista alcunhado de “carioca” distribuía bananas a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada. O comediante de triste figura, estava vestido de presidente e havia acabado de se reunir com Bolsonaro. Durante a gravação, o presidente se recusou a responder perguntas dos jornalistas sobre a principal notícia do dia, o baixo crescimento do PIB em 2019. Em 31 de março, jornalistas que acompanhavam a fala de Bolsonaro em frente ao Palácio da Alvorada deixaram o local após o presidente estimular seus apoiadores a hostilizarem os profissionais. Os repórteres questionavam Bolsonaro sobre as posturas divergentes do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), quando um apoiador gritou que a imprensa “colocava o povo contra o presidente”. Bolsonaro incentivou o homem a continuar. “É ele que vai falar, não é vocês (jornalistas), não”, disse.
No dia 26 de abril deste ano, Jair Bolsonaro chamou de ‘idiota’ uma repórter que lhe fez uma pergunta sobre uma foto divulgada pelo próprio Palácio do Planalto. Na foto, Bolsonaro aparece com um cartaz que simula um cartão de CPF com a palavra “cancelado”, o que acontece quando uma pessoa morre. “Você não tem o que perguntar não? Deixa de ser idiota, menina!”, ameaçou o capitão se dirigindo a jornalista Driele Veiga, da TV Aratu na Bahia. Na passeata no Rio de Janeiro o repórter da CNN, Pedro Duran foi hostilizado e impedido de trabalhar diante das ameaças de apoiadores do capitão no dia 23 de maio de ano 2021. Na última semana Bolsonaro chamou de “quadrúpede” outra profissional da CNN, a apresentadora Daniela Lima.
Os gastos superlativos com o rancho do exército também desencadearam novas ofensas aos jornalistas. O governo gastou mais de R$ 1,8 bilhão em alimentos em 2020. Um dos itens que mais chamou a atenção foi o dispêndio de mais de R$ 15 milhões com leite condensado. Um dos pratos preferidos do capitão. As informações foram do portal “Metrópoles”: “é pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essa lata de leite condensado. Quando vejo a imprensa me atacar dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado… vai pra puta que o pariu, p*****, imprensa de merda essa daí! É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, da imprensa essas latas de leite condensado.”
Em reiteradas iniciativas também tentou inviabilizar os jornais: “vou falar para o empresariado que (…) esses jornais, Revista Época, Folha de S. Paulo, não anunciem lá, jornal que mente o tempo todo, trabalha contra o governo, e se o governo dá errado toda a economia brasileira vai sofrer”. Além de pregar ostensivamente boicotes dos anunciantes, Bolsonaro editou a MP 892 que desobrigava a publicação de balanços de empresas em jornais, cerca de 40% do faturamento dos veículos. A tentativa de asfixiar financeiramente os jornais caducou no Congresso sem nem sequer ser apreciada, em dezembro de 2019. Bolsonaro também mandou cancelar assinaturas da “Folha de S. Paulo” no governo e excluir o mesmo jornal de licitações federais.
A liberdade de expressão e a imprensa são alvos recorrentes da inegável sanha fascista da atual gestão. Mesmo tendo errado no episódio Lary Rother, o governo do ex-presidente Lula não ficou marcado por hostilidades aos profissionais de imprensa. Falo com a isenção de quem, nos nostálgicos tempos de reportagem, foi o primeiro a denunciar o ministro dos Transportes de Lula por corrupção, Anderson Adauto, já no primeiro mês da gestão petista. Também como autor de uma série de reportagens denunciando irregularidades do ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que foi blindado com o foro privilegiado, e de matérias contra a própria Polícia Federal. Nunca fui ameaçado, xingado, intimidado ou mesmo processado. Também não o fizeram tucanos quando denunciei o vice do PMDB de José Serra, Henrique Eduardo Alves por corrupção. Eis a democracia, nada além, nada aquém.