A partir da discussão sobre a prisão após condenação em segunda instância — com a perplexidade provocada pela declaração do presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, segundo o qual o Parlamento poderia sanar definitivamente a questão — o assunto predominante nas rodas dos que leem e podem pensar neste País passou a ser o sentido das “cláusulas pétreas” de uma Constituição.
Não vou tratar o assunto do ponto de vista jurídico. Gostaria de levar o próprio leitor a pensar sobre o problema, começando por entender o que é uma Constituição.
Uma Constituição é o “freio de arrumação” de qualquer sociedade moderna, que se institui pela transformação e resguardo em lei – portanto, aplicável a todos – dos interesses da força social predominante no choque entre as diferentes camadas da população. A Constituição reflete, portanto, uma correlação de forças políticas.
Atualmente, no Brasil, fica visível que as reformas do “Posto Ipiranga” se chocam, claramente, com o que almejam as camadas mais pobres da população. Basta tomar como exemplo a imposição de contribuição previdenciária a quem recebe seguro desemprego para sustentar ou prover recursos para o projeto de “Primeiro Emprego”, à la Bolsonaro.
Onde já se viu pobre ser responsabilizado pela sobrevivência de outro pobre que nem ele?! O próprio “Posto Ipiranga” responderia, se falar quisesse, como exclamou diante do fracasso da rodada de leilões do pré-sal: “Vendemos para nós mesmos”, afirmou, na ocasião, o Ministro Paulo Guedes.
A atual gestão, aparentemente, comporta-se como a “casa de mãe Joana” ou qualquer outro nome que se queira dar, mas são cristalinos os interesses que procura satisfazer e os que procura mitigar ou inviabilizar.
A mesma lógica presidiu as decisões da maioria na Assembleia Nacional Constituinte. Por que o §4º do art. 60 da Constituição dispõe serem “cláusula pétrea” os direitos e garantias individuais, não se aplicando a mesma imutabilidade aos direitos sociais do mesmo texto constitucional de 1988?
Ninguém nega que os direitos individuais — direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade — são muito importantes para todos nós. Mas quais dentre estes direitos são, de fato, cumpridos indiscriminadamente no Brasil de hoje?
Se tomarmos apenas os casos de feminicídios e de mortes de crianças por arma de fogo, ousaria dizer que mulheres e a população infantil estão fora do radar da proteção estatal. Não seria exagero dizer, também, que, nas condições atuais, apenas o direito à propriedade continua sagrado e que o Estado busca garanti-lo a quem a tem.
No desenrolar da vida moderna, cada vez foram sendo menos respeitados os direitos individuais – exceto a propriedade – e cada vez mais jogados na lata de lixo os direitos sociais, que tiveram breve existência histórica efetiva. Começaram a ser observados em alguns países entre as duas grandes guerras e, paulatinamente, desprezados desde que o desenvolvimento de um país deixou de ser medido pela ampliação do acesso da população aos bens produzidos e passou-se a divinizar o “deus mercado”, ou seja, o capital financeiro, com suas imbricações com a indústria bélica e com o setor de serviços digitais.
O mundo todo vive agora essa fase: precariedade de bens para as amplas massas e concentração excessiva de riqueza para os que vivem de rendas. As cláusulas pétreas que restam, enfim, tendem a não proteger mais, salvo uma ínfima minoria.
* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMG