“Existe, porém, uma crise mais profunda que tem consequências devastadoras sobre a (in)capacidade de lidar com as múltiplas crises que envenenam nossas vidas: a ruptura entre governantes e governados. A desconfiança nas instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos projeta em nome do interesse comum. Não é questão de opções políticas, de direita ou esquerda. A ruptura é mais profunda, tanto no nível emocional quanto cognitivo. Trata-se de um colapso gradual de um modelo político de representação e governança: a democracia liberal que se havia consolidado nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra estados autoritários e o arbítrio institucional”. Manuel Castells. “A crise de democracia liberal”.
“Marx havia dito que as revoluções dão a locomotiva da história mundial. Mas talvez, as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam, para a Humanidade que viaja nesse trem, o ato de acionar os freios de emergência”. Walter Benjamin.
Remo sempre contra a maré. Cacoete de uma crítica analisada, portanto, desconfiada de otimismo e “esprit de corps” exagerados. Eles costumam escamotear e trair o real, quando não, induzir à uma covardia inconsciente. Muitos os filmes nesse enredo conhecido em tragédias e farsas. Então ofereço uma crítica ao “Outro”, o bode, o avesso do correto, o reverso do espelho, para um olhar sobre esse “Nós” tão grandiloquente, expresso nas vozes da evocação que tudo diz e explica em nome da equidade e da emancipação e, claro, do caminho certo da história (que julgamos nos bastar, com exclusividade).
Bolsonaristas ainda entorpecidos com as sucessivas derrotas (nas eleições, na fuga do derrotado, no tiro no pé dos atos terroristas de janeiro deste ano) esperneiam e berram aos quatro ventos, esbaforidos e deprimidos.
Essa é a reação típica dos ressentidos. Normal. Hoje o governo, após a patética ação brancaleônica do dia 8 de janeiro, ampliou sua legitimidade. A tragédia (e a farsa) não abandona totalmente a sorte. A frente lulista não possui hoje somente 65 milhões de votos conquistados no segundo turno. A legitimidade foi ampliada. As Forças Armadas encontram-se aliviadas com o fim do histrionismo narcisista e compulsivo do ex-presidente. O bolsonarismo foi nocauteado. Pode se erguer, sim. Mas agora foi cooptado (via Centrão) em 30%, no mínimo, e seus eleitores já ajudam o novo presidente; outros 30% de bolsominions estão estonteados e sem chão, decepcionados com a covardia do candidato a Duce, fugido. Revoltados porque se sentem abandonados no campo de batalha. Dividem-se entre os que pedem água e não suportam mais zoações ou notícias políticas e os que torcem, modestamente, por putsch ou impeachment; outros 30% vão seguindo o paradigma do patético Luciano Hang. Com medo de sofrerem retaliações, ensaiam timidamente os bons votos de sucesso ao novo governo, seguindo suas vidas após um dramático e extenuante jogo entre torcidas fanáticas. Seguem o caminho de casa, da busca de ocupação, da vida real. Precisam voltar a sobreviver. O gás do embuste ficou mais raro e caro.
Por fim, há 10% da extrema direita que, em grande medida, se aproxima da patologia psiquiátrica, que só vê no governo comunistas e Demônios, fraude e incompetência, ladroagem e globalismo, desastres e fim do mundo, alimentando-se numa rica rede de desinformações. Seus “militantes” apostam numa ação militar, no caos mais imediato e outras quimeras. Os baldes de água gelada a eles impostos pela cirúrgica ação de Alexandre Moraes causou-lhes danos gigantes. Presos e não presos encontram-se dependurados no pincel da história. Este grupo tresloucado será destruído não somente pela força educativa do Estado, mas por força do trabalho da direita liberal em reconfiguração, agora ciente e mesmo avessa aos estragos gerais da ideologia de uma ultradireita neoliberal, pois aberta a participar de um novo mercado ambiental para um Brasil regenerado, conforme Jorge Caldeira (Brasil, paraíso restaurável).
Há obstáculos no front da democracia. Fiquemos somente em dois deles presentes no campo de batalhas da frente, ou melhor, das esquerdas nessa colcha de retalhos que é um governo com 37 Ministérios.
1°) Lula não é Santo ou Salvador. O PT esteve sim mergulhado em grandes e vergonhosos esquemas de corrupção. Isso dever sempre ser lembrado e relembrado, sob pena da repetição. Ambos ajudaram Jair Messias a chegar ao poder, mas também ajudaram, aliados em uma frente imensa, a expulsá-lo para a Disney, de onde irá diretamente para a prisão, se retornar ao Brasil. Lula quase não falou de corrupção, ou falou muito pouco ou de maneira muito passageira… Autocrítica sim, assumida, claramente, é vital para o futuro. É o que petistas, não petistas, esquerdas não ortodoxas ou ortodoxas com um mínimo ético, liberais e democratas em geral, ainda aguardam, esse mea culpa definitivo. Errar o mesmo erro, e ele é bem provável, significará caixão para o lulopetismo em 2026 e o retorno revanchista de todos os seus algozes, fascistas e democratas.
2°) Lula ganhou as eleições e formou um governo tão amplo quanto incontrolável (para ampliar bases e interesses). Complicado mas um bom começo como intenção de intermediações. O que faltava ao truculento senso comum do Capitão Orlando. Setores da cultura em todas as suas dimensões encontram-se presentes neste governo que se inicia, dispostos, frente a frente, índios, negros, homossexuais, bi, trans, ecologistas, juristas dos direitos humanos, MST, para tirar este país do atoleiro. Não há dúvidas, temos um leque multicultural inegavelmente mais complexo, democrático, plural, pois intercultural. Mais difícil de governar? Claro que sim. Hitler, Stálin, Mussolini e Mao governaram de formas mais eficientes, com o poder de decisão direto, imediato, autoritária e totalitariamente. As intermediações institucionais tomam tempo e custam dinheiro, dizem os apologetas do utilitarismo autocrático.
A democracia com seus filtros de instituições em comunicação de redes entre diferentes é um desafio muito maior para o exercício de novas gestões do poder. Ditadores podem até lograr crescimento econômico e este não necessita da democracia, como sabido. Mas não dá pra crescer e dividir a sociedade na base do ódio como o bastardo inglório e genocida, o estúpido catatônico o fazia, diuturnamente, como meta de sua política. Bozzo fez algo bom, possivelmente. Para grupos restritos ou mais amplos. Para a democracia, não. Armou imbecis, instaurou o obscurantismo, o terraplanismo, o valor religioso do neopentecostalismo fundamentalista (prejudicando boas religiões pentecostais tradicionais), o desprezo por terras e povos indígenas e a ambição desmedida por suas riquezas, destruindo ainda mais ecossistema em todos os seus biomas.
Enfrentar o desafio da engenharia política de um Brasil-modelo ambiental para o mundo exige mais que derrotar a direita extremada e o protofascismo em escala mundial. Exige a superação nas hostes que se representam como progressistas, liberais, socialistas, uma nova visão de mundo e a superação de certo nacionalismo piegas, quando referenciado social e culturalmente, econômica e tecnologicamente, ao mundo dos séculos XIX e XX. O capitalismo e os refrãos contra o que de ruim ele representou e ainda representa, por força das modernizações em geral, pouco servem diante da urgente tarefa de pensar o desenvolvimento criticamente, em bases radicalmente inovadoras, inclusive quanto aos projetos (em seus alcances e consequências) do “pós-extrativismo e do decrescimento”, com o querem, entre outros, Alberto Acosta e Ulrich Brand.
O Brasil com Lula tem tudo para reinserir nosso país como o centro de um novo modo de vida. Em Bolsonaro a história reivindicava um regresso ao pré-moderno casado com a pirataria de um mercado sem futuro, pois suicida. Com Lula há possibilidades deste Brasil importante e vital para todo o mundo, mas um certo Lula e certo lulismo, uma certa esquerda e um certa visão liberal arcaicas e tacanhas devem ser superadas pelas forças vivas dos milhões de indivíduos abertos às bandeiras da mudança radical, na produção e no consumo, fora dos padrões mortíferos que nos regem e em favor de novas formas de viver, de se alimentar, de consumir, afastando todas as toxidade que adoecem os seres humanos e sobretudo, o planeta. Mas há pedras no caminho.
O PT reaproveita Marina, a contragosto da nomenclatura. E Marina com seu grupo técnico e acadêmico, com todos os seus limites, se não forem fritados ao meio dos acordos transformistas, poderá fixar algumas balizas de alternativas de desenvolvimento comunitário autossustentados para os próximos governos estaduais e municipais. Uma esperança, quem sabe? Algo a resultar de reflexões e superações presentes nas ainda incipientes abordagens ecossocialistas e ecocapitalistas.
Sonho ou delírio?. Talvez. Remar é preciso, mormente contra as obviedades do óbvio (Darcy Ribeiro), antes que o rio desapareça.
Edmundo Lima de Arruda Jr