A conjugação de uma economia desmoronando, denúncias de corrupção, inflação e desemprego foi decisiva para desestabilizar dois presidentes da República desde o início dos anos 1950. Nos dois casos anteriores, e no atual, as denúncias de corrupção sempre tiveram a digital de parentes diretos. Na queda de Fernando Collor de Mello o irmão, Pedro, abriu uma guerra fratricida acusando o então presidente muito além de 3 vezes. Ele foi o autor das denúncias contra PC Farias que expeliram Collor do Planalto. Anos antes, em 1951, quando Getúlio Vargas voltava ao poder, o filho emporcalhou o Palácio do Catete, então sede do governo. Manuel Vargas, Maneco como era conhecido o quarto filho do ex-presidente, estava no epicentro de traficâncias determinantes para o colapso do governo, o suicídio do pai e uma guinada trágica na história brasileira.
Maneco, embora pouco mencionado como um dos principais responsáveis pela crise que levou o pai ao suicídio em 1954, teve um papel crucial no desfecho trágico do dia 24 de agosto daquele ano. A expressão “mar de lama”, cunhada por Vargas e massificada pela UDN e Carlos Lacerda para trucidar Getúlio, é originada dos negócios escusos de Maneco com Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas, motorista e mentor do atentado da rua Tonelero, que feriu Lacerda, vitimou o Major Rubens Tolentino Vaz e mudou a história do Brasil. Os estampidos em frente ao número 180 da Tonelero, em Copacabana, dispararam a contagem regressiva para o ocaso da Era Getúlio Vargas.
O segundo governo do “pai dos pobres” estava paralisado em uma crise política sem fim. A economia estagnada, inflação em disparada, queda do poder aquisitivo e denúncias diárias de corrupção espancavam Vargas. O cerco se fechou após a morte do Major, investigada em um inquérito da Aeronáutica. A conhecida República do Galeão tornou o governo insustentável. O aprofundamento das apurações revelou que Gregório Fortunato enriquecera ilicitamente na penumbra do governo e adquiriu fazendas de Manuel Antônio Vargas – o Maneco – sem renda que lastreasse o negócio sujo. Para agravar a situação, Fortunato fizera um empréstimo em um banco público com o aval de João Goulart. Fortunato era visto, na época, como símbolo da corrupção. As trapaças de Maneco serviram para quitar dívidas pessoais e abreviar o governo Vargas, que, encurralado pelas velhacarias do filho, optou por sair da vida para entrar na história.
Pedro Collor de Mello foi outro parente responsável pela queda do irmão da presidência, só que na condição de acusador. Ele foi autor de uma caudalosa denúncia de corrupção contra o então presidente da República. Por conta dela, Fernando Collor foi cassado por corrupção no desfecho do processo de impeachment instaurado pelo Legislativo. Collor tentou tardiamente renunciar para preservar os direitos políticos, mas não colou. Pedro fuzilou o tesoureiro da campanha, Paulo Cesar Farias, o PC Farias, acusando-o de usar a amizade com Collor para enriquecer. Também entregou um dossiê e apontou falcatruas que envolviam o irmão e PC Farias, outro Gregório Fortunato da história nacional, menos truculento, mas igualmente voraz. Collor caiu por pouco. Uma Fiat Elba, a partir da denúncia de outro motorista, Eriberto França, uma espécie de faz tudo da ex-secretária de Collor, Ana Acioli. PC Farias, assassinado em 1996, se eternizou na memória brasileira, exatamente como Gregório Fortunato, como um ícone da corrupção. PC Farias saiu da vida para a escória da história.
O mesmo ambiente de trapaças ameaça o senador Flávio Bolsonaro, o filho encrencado chamado de zero um, o Maneco repaginado. O senador foi eviscerado pelas investigações do Ministério Público e denunciado por crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele é apontado pelo MP como líder de um esquema de corrupção que consistia em receber de volta boa parte dos salários de 23 ex-assessores entre os anos de 2007 e 2018, período em que foi deputado estadual. Também há suspeitas de uso eleitoral do dinheiro e investigações sobre uso da máquina pública para blindar Flávio Bolsonaro.
O ex-PM Fabricio Queiroz, espécie de capanga e também motorista do clã – o Gregório Fortunato dos Bolsonaros – foi apontado como operador da quadrilha. Foi denunciado, junto com outros 15 ex-assessores, pelos mesmos crimes que o ex-chefe. As investigações, que começaram em meados de 2018 após Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) identificar movimentações atípicas nas contas de Queiroz, concluíram que R$ 6 milhões de dinheiro público, subtraídos do pagamento de funcionários que, em sua maioria fantasmas, viraram patrimônio privado de Flávio Bolsonaro. As conclusões são do MP.
Do total movimentado, pouco mais de R$ 2 milhões vieram de centenas de transferências bancárias e depósitos em espécie feitos por assessores com quem o ex-policial tinha relações. Segundo as investigações, o dinheiro era repassado para Flávio Bolsonaro através de outros depósitos ou pagamento de despesas pessoais. Muitos em dinheiro vivo. Foram mais de 100 boletos de escola e planos de saúde honrados em espécie, além de um depósito de R$ 25 mil, ainda sem explicação, na conta bancária da esposa de Flávio Bolsonaro.
A ocultação do dinheiro se deu em transações imobiliárias, muitas com dinheiro em espécie, oriundo de pagamentos na loja de chocolates da qual Flávio Bolsonaro era sócio. O Senador e a esposa receberam 146 depósitos, no total de R$ 295 mil, utilizados para pagar parcelas de um apartamento. O inquérito reforçou ainda mais o elo de Queiroz e da família Bolsonaro com Adriano Magalhães da Nóbrega, miliciano que comandava no Escritório do Crime, envolvido na execução da vereadora Marielle Franco. Adriano virou arquivo morto em uma operação policial em fevereiro de 2020 no interior da Bahia. A ex-mulher e mãe de Adriano, também foram empregadas no gabinete de Flávio. A dupla repassou para Queiroz R$ 200 mil. As pizzarias da família teriam repassado ainda outros R$ 200 mil.
A ciranda criminosa arrastou Queiroz para o centro dos holofotes da corrupção, a exemplo de Fortunato, há 66 anos. Após uma cirurgia, paga em dinheiro, para a retirada de um câncer no hospital Albert Einstein, em São Paulo, o homem-chave da investigação evaporou, apesar de agendar depoimentos ao MP do Rio aos quais não comparecia. No período da submersão, o ex-policial seguiu agindo para embaçar as investigações e, por essa razão, foi preso. Ele estava homiziado na casa do advogado Frederick Wassef, advogado de Flávio e do presidente da República, chamado de “anjo”. Gregório Fortunato também era conhecido pelo apelido de “anjo negro” de Vargas.
No baculejo foi rastreada uma dinheirama de Queiroz para Michelle Bolsonaro. Foram 27 depósitos em cheque que totalizam R$ 89 mil. Questionado, o capitão Bolsonaro, adepto da selvageria, ameaçou dar “porrada” em um repórter, mas não explicou a generosidade do ex-assessor até hoje. No rastro do dinheiro, escrituras de cartório foram publicadas por diversos órgãos de imprensa. O vereador Carlos Bolsonaro, o filho zero dois do presidente, pagou R$ 150 mil em dinheiro vivo por um apartamento. Já o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o filho zero três, usou R$ 150 mil em grana para pagar parte de dois apartamentos. A aquisição de bens com dinheiro em espécie gera suspeitas de lavagem de dinheiro.
Na era conflagrada de Carlos Lacerda, notório pela retórica agressiva e inflamada, a compra das fazendas gerou o fulminante bordão do “mar de lama” que emporcalhava os subterrâneos do Catete, Getúlio Vargas, sua família e Gregório Fortunato. Os valores de aquisição das fazendas por Gregório Fortunato, corrigidos, equivalem hoje a R$ 3,8 milhões. Getúlio se matou 19 dias após o atentado, inaugurando uma triste maldição familiar. Fortunato foi preso, admitiu ser mandante do ataque a Lacerda, isentou Vargas e purgou 8 anos de cadeia até ser assassinado, em 1962, na penitenciária. A suspeita foi queima de arquivo, como Adriano da Nóbrega e PC Farias. Queiroz, o Fortunato dos Bolsonaros, parece ignorar a história ao sustentar a inverossímil inocência do ex-chefe, deixando sem explicação os depósitos nas contas de Michelle Bolsonaro e da esposa do próprio Flávio e a centena de boletos que pagou.
Os cerca de R$ 6 milhões movimentados por Flávio Bolsonaro, sua mulher, Queiroz, Michelle Bolsonaro, os saques em espécie, imóveis adquiridos com grana viva, atualmente são eufemizados pela indulgente ‘rachadinha’. A testemunha Luiza Sousa Paes, uma das ex-fantasmas, confirmou que devolvia 90% do salário e até a restituição do imposto de renda. É dela a expressão “deu ruim” que sintetiza a indigência moral do que se passou ali. Do Maneco ao xaveco navegamos na nossa melancólica trajetória da história à escória.