Crimes comuns cometidos por parlamentares costumam ser punidos sumariamente com a cassação dos mandatos. A galeria dos últimos anos é modesta numericamente, mas estarrecedora quanto a gravidade das delinquências. Em 8 anos, entre 1991 e 1999, 4 deputados foram cassados a partir de crimes comuns. Foram 3 assassinos e 1 traficante. Há casos de cassação em 40 dias. Em um deles Jair Bolsonaro atuou como defensor do criminoso. Pressionada pela sociedade, a velocidade das decisões, sem abrir brechas para contestações judiciais posteriores, também se ajusta ao tamanho da repercussão externa. Um dos processos mais lentos da história do parlamento, envolvendo crimes comuns, é exatamente a trama macabra da deputada Flordelis. Ela é apontada pelo Ministério Público e pela Polícia Civil do Rio de Janeiro como mandante da morte do próprio marido e teria contado com auxílio dos filhos.
Flordelis foi eleita na onda da fossa nova carioca. É a encarnação irretocável do embuste batizado de nova política. Um hibridismo de banditismo, genocídio, cinismo, incompetência, corrupção e imposturas. Flordelis é terrivelmente evangélica, de comportamento demoníaco e aliada de Bolsonaro. Formalmente acusada em agosto de 2020, escapou do xilindró protegida pela imunidade. No início de outubro, o corregedor da Câmara deu o pontapé inicial em um parecer que opinou pela continuidade do processo de perda de mandato no Conselho de Ética. O Conselho tem um prazo longo para oferecer uma conclusão abrindo prazos para defesa. Flordelis foi favorecida pela Covid 19. O processo não andou e ela rompeu 2021 ainda sob benesses do mandato e tramando mais chicanas para prosseguir impune por vários meses.
A deputada carioca engrossa a lastimável malta de facínoras que procuram se homiziar sob o manto da representação popular. O valhacouto buscado por alguns criminosos acaba por desvirtuar equivocadamente o debate sobre a salvaguarda democrática da imunidade parlamentar. A imunidade protege opiniões e votos e não há argumentos convincentes para que ela prevaleça em crimes comuns, se comprovados, independente de flagrante. Delcídio do Amaral, ex-líder petista no Senado, inaugurou o precedente de prisão de parlamentar sem ter sido flagrado no momento do crime. O STF esticou a corda e caracterizou a conduta do ex-senador como flagrante continuado – obstrução da Justiça- para justificar a prisão e ensejar a posterior cassação.
Hildebrando Pascoal é um afamado ex-deputado condenado a mais de 100 anos de prisão por assassinatos em série. No final dos anos 90, ele ficou conhecido por mandar executar inimigos com o uso de motosserra, incluindo um garoto de 12 anos filho de um desafeto. Acusado de chefiar um grupo de extermínio no Acre, Hildebrando Pascoal fez carreira na PM e chegou a ser comandante. Em 1994, elegeu-se deputado estadual pelo PFL (atual DEM) e exerceu o mandato entre 1995 e 1999. Nas eleições de 1998 conquistou o cargo de deputado federal, mas não chegou a cumprir nem um ano do mandato.
Após diversas denúncias contra Hildebrando Pascoal na Justiça do Acre, o Congresso Nacional formou uma Comissão Parlamentar de Inquérito em abril de 1999, que ficou conhecida como a CPI do Narcotráfico. A CPI e o Ministério Público investigaram a existência de um grupo de extermínio no Acre, com a participação de policiais, e que seria comandado por Hildebrando Pascoal. O grupo também era acusado de tráfico de drogas. A principal acusação contra o então deputado durante a CPI era de que ele teria sido mandante do assassinato em 1997 de pessoas que testemunhariam contra ele.
A cassação do mandato do deputado Hildebrando Pascoal foi aprovada pela Câmara dos Deputados por 394 votos a favor e 41 contra. Houve 25 abstenções e 7 votos em branco. O espaço entre as primeiras denúncias da PGR e a cassação foi de 5 meses. Pelo menos seis integrantes da CPI do Narcotráfico, que levantou denúncias contra Hildebrando, receberam telefonemas em seus gabinetes com xingamentos e ameaças de que iriam “pagar pelo que estavam fazendo”.
Talvane Albuquerque é outro lendário jagunço a ensanguentar os anuários da Câmara dos Deputados. Ele foi condenado a 103 anos de cadeia como mandante do assassinato da ex-deputada federal Ceci Cunha e mais três parentes dela. Talvane era o primeiro suplente da coligação e se beneficiaria herdando o mandato. O crime ficou conhecido como Chacina da Gruta, em referência ao bairro onde a deputada residia, em Maceió. Ceci Cunha foi morta na varanda de sua casa, com o marido e familiares, na mesma noite em que foi diplomada deputada federal, em 1998. O filho de Ceci Cunha é o atual senador Rodrigo Cunha.
Talvane Albuquerque, a exemplo de Brilhante Ustra e outros assassinos, contou com o indefectível defensor dos sanguinários e advogado de outras cepas de pistoleiros. Jair Bolsonaro foi único a defender o facínora na sessão de 7 de abril de 1999 na Câmara dos Deputados: “Sr. Presidente, em toda minha vida parlamentar não conversei por mais de dez segundos com o Deputado Talvane Albuquerque. Não tenho absolutamente nenhum contato, nenhum grau de amizade com S.Exa, mas fico com a minha consciência pesarosa de votar pela cassação desse Parlamentar, porque amanhã qualquer um de nós pode estar no lugar dele”, disse Bolsonaro para acrescentar com despudor vulgar: “Mas quem aqui nunca teve contato ou conversou com um marginal?… Mais grave do que conversar com marginal é conversar com marginal de colarinho branco!”. Sabe-se hoje que o protetor de Talvane convive bem com várias castas de delinquentes. A defesa obscena de Bolsonaro não livrou o assassino da cassação, apenas 3 meses depois das primeiras denúncias.
O ex-deputado Sérgio Naya, dono da construtora Sersan – que construiu o edifício Palace 2, no Rio -, foi acusado de ferir o decoro parlamentar ao fazer afirmações que configuravam falsidade ideológica. A base para a acusação foi uma fita de vídeo – divulgada após o desabamento do Palace 2 – com as declarações de Naya, gravada durante reunião com vereadores na Câmara Municipal de Três Pontas (MG) confessando crimes, inclusive a falsificação de assinatura de um governador mineiro. O Palace 2 desabou no dia 22 de fevereiro de 1998, provocando a morte de oito pessoas e deixando ainda 120 famílias sem moradia. O laudo técnico apontou erro de cálculo na obra. O deputado chegou a ficar 27 dias preso. Os escombros e as mortes do Palace 2 foram capitais para o expurgo. Naya teve o mandato cassado por quebra do decoro parlamentar no dia 15 de abril de 1998, apenas 40 dias após o início das acusações, um recorde. O placar da votação secreta foi de 277 votos pela cassação, 20 além dos 257 necessários; 163 deputados foram contrários à punição.
Jabes Rabelo é outro malfeitor. Em maio de 1991 foi acusado pela ex-deputada federal Raquel Cândido de envolvimento com o tráfico de drogas, juntamente com os deputados rondonienses Maurício Calixto e Nobel Moura. Rebatendo a acusação, exibiu uma certidão da penitenciária Ênio Pinheiro, em Porto Velho, atestando que Raquel Cândido estivera presa em 1973, por tráfico de drogas. No entanto, o Ministério Público de Rondônia comprovou a falsificação do documento. Segundo a Polícia Federal, seu sucesso empresarial estava ligado ao narcotráfico e as empresas da família funcionavam como fachadas para a lavagem do dinheiro das drogas.
Dois irmãos do então deputado, Abidiel Pinto Rabelo e Noabias Pinto Rabelo, foram presos em São Paulo com um carregamento de 554 quilos de cocaína. Com Abidiel foi encontrada também uma falsa carteira de assessor parlamentar da Câmara dos Deputados, assinada por Jabes Rabelo. O pai e a irmã Nilce foram indiciados por receptação de veículos roubados e apreendidos no Paraná. Toda família estava na criminalidade. Em agosto de 1991 a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o pedido de suspensão da imunidade parlamentar de Jabes Rabelo, requerida pelo STF a fim de processá-lo por receptação de veículo roubado, em 1985. A decisão foi ratificada pelo plenário da Câmara por 366 votos a favor e 35 contra. Foi a primeira vez que a Câmara dos Deputados concedeu licença para processar criminalmente um parlamentar.
Com a posterior confirmação da assinatura do deputado na falsa carteira de assessor parlamentar, apreendida com seu irmão, por peritos em criminalística, a CCJ aprovou, em novembro de 1991, o pedido de cassação de seu mandato. A decisão foi ratificada pelo plenário da Câmara no dia 7 de agosto, por 270 votos contra 150. Jabes Rabelo foi afastado em novembro apenas 3 meses depois da denúncia. Todos os episódios no passado tiveram uma tramitação muito célere. Apenas Flordelis, diante de uma enxurrada de evidências de ser a mandante do homicídio do marido, repousa inexplicavelmente no mandato. Durante a pandemia a Câmara aprovou 180 propostas na modalidade remota em plenário, mas o Conselho de Ética, um minúsculo colegiado com apenas 21 deputados, não deu a celeridade necessária diante da gravidade do caso.
Arnon de Mello, pai de Fernando Collor, sacou o 38 dentro do plenário do Senado em 1963 para tentar matar o desafeto Silvestre Péricles de Góes Monteiro. Dois tiros acabaram atingindo José Kairala que tentava conter a briga e faleceu horas depois. Ronaldo Cunha Lima era governador da Paraíba em 1993 quando tentou matar o antecessor, Tarcísio Burity no restaurante Gulliver em João Pessoa. Eduardo Bolsonaro é o liliputiano da atualidade que, como o pai e o irmão Carlos, celebra a morte e cultua as armas. A troca dos projetos pelos projéteis também foi responsável pela tocaia e execução covarde da vereadora Marielle Franco pela milícia carioca, parceira condecorada, vizinha e amiga dos Bolsonaros.
As trapaças da nova política exalam a putrefação do pior passado. O volume é assustador para um tempo tão curto. Além de Flordelis, governadores foram afastados, um prefeito foi preso, ministros fugiram, milicianos estão encarcerados ou mortos, um parlamentar foi flagrado com dinheiro nas nádegas, o senador e filho do presidente da República está denunciado por corrupção, outros dois filhos do são investigados, uma senadora foi cassada (Selma Arruda, a “Moro de Saias”), laranjas apareceram, ministros estão indiciados em inquéritos, existem mais de 50 processos de impeachment e muitas apurações por crimes comuns. Outros apoiadores do governo são alvos porque desafiam as instituições, xingam o STF, pregam golpes, rupturas constitucionais, a volta do AI-5, além de investigações por falsidades e financiamentos de atos ilegais e um oceano de delitos menores.
De Flordelis a Fabrício Queiroz, passando pelos familiares, a índole transgressora é sempre – coincidentemente – de apoiadores ou chegados de Jair Bolsonaro. Se os poderes constituídos não agirem energicamente para atalhar a marcha nefasta dos facínoras, em breve as instituições se transformarão em um covil de proteção a milicianos capaz de esmaecer a selvageria encarnada por Hidelbrando Pascoal, Talvane Albuquerque, Jabes Rabelo e Sérgio Naya. Sem encontrar limites, a fina flor do crime apenas começou a aflorar. O mal se corta pela raiz.