Ao ver o estarrecedor episódio que culminou com a morte do negro João Alberto Silveira Freitas em um supermercado Carrefour de Porto Alegre é importante destacar outros casos de idêntica barbárie e demonstração de racismo. São vários, na verdade. Impossível ter conhecimento de todos atos deploráveis Brasil a dentro e mundo a fora.
No dia das eleições municipais, no domingo 15 de novembro, Ana Lúcia Martins foi eleita em Santa Catarina. A primeira mulher negra eleita para a Câmara de Vereadores da cidade de Joinville. Assim que o resultado das urnas foi conhecido, ela passou a receber ameaças de morte, ataques racistas, intolerantes, preconceituosos e de injúria racial, por meio das redes sociais. Descobriu-se que, covardemente, os perfis disseminadores das agressões são fakes.
No meio da semana, em Governador Valadares, Minas Gerais, o gestor de uma loja de eletrodomésticos – a Ponto Frio -, situada em um shopping da cidade, foi miseravelmente humilhado. A razão? Uma mulher, acompanhada possivelmente do marido, não se contentava em saber que seu alvo exercia a função de gerente do estabalecimento. Sua palavaras: — é inadmissível que um negro gerencie uma loja tão grande”, foram as palavras proferidas. Em Brasília, um advogado famoso de gente importante destratou a mocinha negra que o atendia numa lanchonete chamando-a de macaca.
Na quinta-feira, 19, outro caso repugnante: a tradicional homenagem ao Dia da Consciência Negra — realizada em missa de ação de graças há 16 anos na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, no bairro carioca da Glória, Zona Sul da Cidade Maravilhosa — foi alvo de protesto e ameaças. E não foi por conta da pandemia que assola o planeta, mas por pressão para cercear o evento. Grupos de fiéis tradicionalistas não queriam a realização da manifestação voltada para a cultura da negritude. Era repetição do que aconteceu em 2019, quando houve confusão contra a celebração, desta vez protagonizada por grupos radicais que invadiram o local onde acontecia o culto afro. Somente meses após, a Polícia Civil proclamou o indiciamento de cinco pessoas por intolerância religiosa e outras tantas pelo crime de racismo.
Para completar o ciclo de barbárie, o triste episódio no Rio Grande do Sul, quando o negro João Beto foi barbaramente espancado com socos e asfixiado até a morte por dois seguranças brancos. O motivo? O rapaz teria feito ameaças a uma funcionária da loja. Há pressões para que o caso seja tratado pela polícia como homicídio com dolo eventual.
Os quatro episódios, aqui relatados, aconteceram esta semana no Brasil, às vésperas do Dia da Consciência Negra.
Impressionante como a imagem é peça essencial para mover a sociedade contra acontecimentos dessa magnitude. Quem não se lembra das cenas repugnantes de George Floyd, nos Estados Unidos, igualmente morto, dessa vez por policiais brancos? Lá como cá, a reação e consequências foram imediatas. Manifestações e protestos contra a discriminação tomaram as ruas.
Até quando justificativas para amenizar a questão do racismo estrutural encontrarão solução em frases como “eu, até, tenho amigos negros!”? É escândalo que uma frase não resolve problema arraigado por gente preconceituosa há milênios. Até quando existirão dizeres como “situação estará preta” — e não de outra cor –, “denegrirão pessoas”, “lista será negra”, “neguinho teve tal atitude”?
Até quando o racismo estrutural, em plena segunda década do século XXI, se manterá? Quantos Cruz e Souzas, Rosa Parks, Malcolm Xs, Carolinas de Jesus, Martin Luther King Jrs., Zumbi dos Palmares, Dandaras, Angela Davis, Desmond Tutus, Josés do Patrocínio, Koffi Annan, Nelson Mandelas, Francisco José do Nascimento, Machado de Assis, Laudelinas de Campos Melo, Abdias do Nascimento, Conceições Evaristo, Suelis Carneiro, Mães Meninazinhas de Oxum, Mães Menininhas do Gantois, Manuéis Congo e Marianna Crioula, líderes intelectuais, políticos e outros, em vertentes, mais populares e tantas e tantos mais serão precisos para que essa mentalidade segregacionista, ainda que velada em alguns casos, seja definitivamente extinta? Quantos e quantas? E sobre Marielle Franco, igualmente assassinada a tiros, no Rio?
Esse racismo estrutural, com origem a partir do século XVI no país, imposto pelos colonizadores portugueses no procedimento de escravização dos povos africanos, que segundo eles “não tinham alma”, não pode mais perdurar. A Lei não poderá mais ser apenas “para inglês ver”. A Lei tem que ser de fato e de direito para todos, como determina o artigo 5° de nossa Constituição. Respeito!
Segundo o livro “ Escravidão – Vol. 1”, de Laurentino Gomes, estima-se que foram trazidos ao Brasil entre cinco e doze milhões de seres humanos escravizados. Esse tráfico frenético realizado no Oceano Atlântico, chegou a mudar os hábitos alimentares dos tubarões, tal o número de pretos que eram jogados ao mar quando adoeciam ou morriam durante a travessia. Quanta dor! Quanta insensatez! Quanto sofrimento!
— Carlos Monteiro é Jornalista