A farra da farda marcha sobre o orçamento público despudoradamente. Enquanto a fome se alastrava, os brasileiros faziam fila para carcaças e ossos, morriam de Covid-19 ou afogados pelas enchentes, o Ministério da Defesa se refestelava com cerca de meio milhão de reais torrados com filé mignon e picanha. Seguia à risca o mantra da gestão é do capitão: “Se eu puder dar filé mignon pro meu filho, eu dou”. Maminha com molho de mamata e picanha com farofa da picaretagem.
De acordo com a Secretaria de Controle Externo de Aquisições Logísticas do Tribunal de Contas da União, a vergonha verde-oliva também se esbaldou na compra de itens luxuosos e caros, como bacalhau, salmão, camarão e bebidas alcoólicas. A verba usada para a aquisição de itens supérfluos foi surrupiada da ação orçamentária destinada ao “enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decorrente do Coronavírus”, criada para custear políticas públicas de saúde de combate à Covid.
“Ressalte-se que, dos recursos destinados ao combate à pandemia Covid-19 utilizados indevidamente para aquisição de itens não essenciais (aproximadamente R$ 557 mil), 96% foram despendidos pelo Ministério da Defesa”, concluiu a análise técnica do Tribunal de Contas que também investiga outros contratos.
Não é o primeiro desfile da imoralidade do destacamento bolsonarista. Outro relatório do Tribunal de Contas da União, de junho de 2021, levado à CPI quando ela estava no auge da audiência, mostrava que as Forças Armadas teriam usado indevidamente R$ 4,1 milhões dos recursos destinados ao enfrentamento à Covid-19 para outras finalidades durante a pandemia. Outros R$ 9,6 milhões possuíam “pendência de comprovação” de sua correlação com ações de combate ao novo coronavírus.
A análise constava do relatório do ministro do TCU, Augusto Sherman Cavalcanti. Dentre os gastos considerados irregulares, estavam a reforma de imóveis, a compra de micro-ônibus e aquisição de itens como mochila, porta-celular, coletes e bandeira. As informações fizeram parte de manifestação preliminar da unidade técnica do Tribunal.
As Forças Armadas, alistadas no bolsonarismo, viraram pavilhões do desperdício. De mão amiga a mão leve foi um passo. Apenas em gastos supérfluos em 2020, foram mascados R$ 2,2 milhões em chicletes, torrados R$ 32 milhões com pizzas e refrigerantes e entornados R$ 15,6 milhões em leite condensado para as tropas. Aquele leite condensado que Bolsonaro disse para “enfiar”.
Um levantamento feito por deputados do PSB no orçamento mostrou que as Forças Armadas adquiriram 80 mil unidades de cerveja e 700 mil quilos de picanha. O estudo aponta um superfaturamento superior a 60%. No cardápio do rancho foram incluídos ainda bacalhau, uísque 12 anos e conhaque para o alto comando. Esses dados engrossam a farra de R$ 1,8 bilhões gastos para a ração da tropa. De outro lado, os privilegiados militares de pijama com função gratificada no governo passaram a ganhar muito mais, rompendo o teto constitucional (R$ 39,2 mil). Braga Neto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno, exatamente os que ecoam as cornetas golpistas, foram beneficiados. A farra é “generalizada” e a farda se inebria com o dinheiro do contribuinte.
A caserna é uma caverna obscurantista e perdulária. As digitais desonestas de uma legião de altos oficiais das Forças Armadas ficaram esparramadas em investigações múltiplas. A alegoria maior do despreparo, da insipiência e do descaminho atende pelo nome de Eduardo Pazuello, um general medíocre, servil e omisso. Comandadas por um corneteiro autoritário, setores das Forcas Armadas, ao invés de baterem continência às apurações sobre eventuais malversações da tropa, optam sempre por notas desafinadas e belicistas. Pazuello tem um histórico público da incapacidade.
Em sua gestão a pandemia explodiu e a corrupção emergiu. A compra de 20 milhões de doses da Covaxin expôs ilegalidades e rastros deixados por ele e seus recrutas. O capitão pediu 20 milhões desse imunizante enquanto “cagava” para as ofertas de 170 milhões da Pfizer e Coronavac. Sob o estandarte de Pazuello o contribuinte pagaria R$ 1,6 bi para adquirir um imunizante superfaturado, nunca entregue e intermediado por um caloteiro ligado ao líder do governo, Ricardo Barros. Alertado do escândalo pelos irmãos Miranda – um servidor de carreira do MS e um deputado Federal -, o autointitulado “incorruptível” Bolsonaro nada fez. A bem da verdade estimulou o negócio fazendo lobby junto ao governo indiano. Prevaricação indesmentível, para dizer o mínimo.
Três dias após o falso testemunho à CPI, em maio de 2021, Pazuello participou de um comício ao lado do capitão, sem máscara. Militar da ativa é proibido de participar de atos políticos. A anarquia foi óbvia e a disciplina militar atirada no esgoto por quem tem o dever de zelar por ela. O comando do Exército deu um péssimo exemplo ao não punir Pazuello pela transgressão. Foi uma capitulação histórica e vergonhosa. O enrolado braço direito de Pazuello, coronel Élcio Gomes, hoje no Planalto, acelerou o contrato da Covaxin.
Enquanto o governo desprezava mais de 80 mensagens da Pfizer por mais de 300 dias e outras tantas ofertas do Instituto Butantan, o Ministério da Saúde precisou de apenas 15 tratativas para fechar a Covaxin, apesar das severas restrições da Anvisa. A bilionária compra sem o aval da agência sanitária implodiu outro falso discurso governamental. Entre o pedido do capitão ao governo indiano e a assinatura do contrato superfaturado foram apenas 47 dias. O preço inicial da vacina era de US$ 10 dólares, negociáveis para baixo, mas acabou custando US$ 15, 50% a mais que imunizantes como Pfizer, Corona Vac e Janssen. Entre as mais de 20 irregularidades detectadas, tentou-se o pagamento antecipado em nome de uma offshore em paraíso fiscal. Expediente totalmente anômalo e estranho ao contrato.
Um outro coronel, Marcelo Blanco, discutiu abertamente a compra de vacinas com um trambiqueiro que foi recebido inúmeras vezes no Ministério da Saúde enquanto grandes laboratórios, com ‘compliance’ e regras rígidas para impedir a promiscuidade entre o público e o privado, mendigavam reuniões para negociar vacinas eficazes, seguras e mais baratas. O estelionatário Luiz Paulo Dominguetti, associado a um reverendo do pau oco e outros malandros anônimos, acusou a cúpula do Ministério da Saúde de cobrar propina de 1 dólar por dose na intermediação de 400 milhões de imunizantes inexistentes da AstraZeneca.
Mais do que a corrupção escancarada, estarrece a inépcia dos mais altos escalões da Saúde ao recepcionar vigaristas que não representavam vacina alguma no auge da pandemia. A tragédia brasileira não é casual. É resultado da cobiça, da corrupção e da incompetência. Mas a caserna foi conivente e se calou diante de inúmeros coronéis e generais acusados de corrupção com as vacinas.
A CPI que esfolou o governo reforçou a convicção da maioria dos brasileiros sobre corrupção entres os oficiais recrutados por Pazuello. O ladrido da caverna fardada veio em letras intimidadoras: “O ministro de Estado da Defesa e os Comandantes da Marinha do Brasil, do Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira repudiam veementemente as declarações do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, Senador Omar Aziz, no dia 07 de julho de 2021, desrespeitando as Forças Armadas e generalizando esquemas de corrupção. Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”.
Padrão golpismo de outro ocioso, Augusto Heleno, na nota de 22/5/2020: “O pedido de apreensão do celular do Presidente da República é inconcebível e, até certo ponto, inacreditável. Os quepes sabujos, os cavalariços subservientes e aproveitadores, enfrentarão a justiça pelos crimes que tenham praticado na orgia do servilismo remunerado. A vergonha os acompanhará pelo resto de suas vidas e pelas gerações que os sucederá.
A vergonha não encontra limites no alistamento de Jair Bolsonaro. Um brioso oficial das Forças Armadas brasileiras, que ameaçaram nossas instituições democráticas, é o ministro e general Luiz Eduardo Ramos, atual ministro-chefe da Secretaria da Presidência. Medrado, ele foi ouvido em uma reunião que pensava ser reservada. O destemido general brasileiro disse que tomou a vacina contra a Covid-19 “escondido” e que tentaria convencer Jair Bolsonaro a se imunizar também: “Tomei escondido, né, porque a orientação era para todo mundo ir pra casa, mas vazou. Não tenho vergonha, não. Eu tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. Se a ciência e a medicina tá (sic) dizendo que é a vacina, né, Guedes, quem sou eu para me contrapor?”. Ele pode, de fato, não ter “vergonha”. Vergonha sente quem tem.
A farda é também uma farra nepotista. A Casa Civil, quando tocada pelo general Braga Neto, autorizou a nomeação da filha dele para uma gerência na Agência Nacional de Saúde. A filha de Pazuello emplacou no governo do Rio. A filha de Eduardo Villas Bôas ganhou um posto na pasta de Damares, onde gravitam ultradireitistas relacionados ao golpe tentado em 2020. O filho do vice Mourão teve 2 promoções em 6 meses no Banco do Brasil. Carlos Bolsonaro ironizou: “Nova promoção! Parabéns”. Pelos dados do TCU, perto de 6 mil quepes rebaixaram suas patentes, desprezando a Nação e expondo as Forças Armadas ao enxovalho diário em nome de uns trocados a mais no soldo daqueles que se alistaram no batalhão genocida.
Jair Bolsonaro, escorraçado dos quartéis em 1988, é incapaz e mal-intencionado. Empilha fracassos em todas a áreas e, por isso, busca se proteger da ruína na fortificação do “braço forte, mão amiga” e aposta na solidariedade verde-oliva para delirantes quarteladas.
Para toda crise ele tem a trapaça padrão da vassalagem fardada: generalizar. As estrelas militares mais visíveis da anarquia gerencial do Brasil são as mais foscas, as mais toscas. Se somam aos mitos assassinos de Bolsonaro. Entre os carniceiros cultuados estão os mais cruéis, torturadores, os ídolos do capitão: coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (chefe do DOI-CODI) e o major Sebastião Curió (responsável pela morte de 41 pessoas na guerrilha do Araguaia), além de Augusto Pinochet e Alfredo Strossner. Sádicos que usaram as divisas para matar e cometer crimes. “Nasci em 1963, não sei nem o que é AI-5, nunca nem estudei para descobrir o que é”, disse o ignorante Pazuello assim que desembarcou na Saúde. O AI-5 foi o auge da repressão. Fechou o Congresso, baixou a censura, suspendeu o habeas corpus e proibiu reuniões. A “mão amiga” disparou contra o próprio povo e os quartéis espalharam tortura, morte, exílio, desaparecimento e outras atrocidades. Nunca foram punidos e isso diz muito sobre a desenvoltura atual deles.
As patentes no Brasil quase sempre foram sinônimo da morte. O “braço forte, mão amiga” armou os fortes na ditadura para disparar contra o próprio povo, maculando a história nacional com sangue e infâmia. Os herdeiros do “braço forte” seguem cultuando o pretérito macabro ao servir a um celerado que faz apologia à tortura e à morte. Hoje a vergonha brasileira é de um verde-oliva que vem mudando de tom e esmaecendo. Exceção ao contra-almirante Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa, que, prestigiando a ciência e as responsabilidades do cargo, confrontou Bolsonaro na CPI e voltou a desafiar o capitão e seus súditos macabros ao defender a vacinação de crianças contra Covida-19. Tudo feito à luz do dia, muito diferente do misterioso acidente de motocicleta de Eduardo Pazuello na noite da véspera de Natal na penumbra da região dominada por boates noturnas no Rio de Janeiro. A carne sob a farda, além de fraca, é podre.