Reformas abrem velhas feridas das rivalidades regionais

O "fundo do poço", apregoado por Paulo Guedes, pode acirrar velhas rivalidades regionais

Ministro Paulo Guedes - Foto Orlando Brito

Rumo ao buraco negro. Esta foi a advertência-ameaça do ministro Paulo Guedes aos congressistas.

O Parlamento seria responsabilizado pelo mergulho do Brasil numa crise sem precedentes, pior mesmo que o grande confisco do presidente Fernando Collor, em 1990, ou do encilhamento do presidente Deodoro da Fonseca, em 1890. Nas duas, caíram os presidentes. O Parlamento sobreviveu.

Buraco negro

O ministro está dizendo que o buraco negro está logo ali, no começo do segundo semestre. Se o Congresso não der ao Executivo os instrumentos legais para enfrentar a recessão, o País mergulhará na inadimplência e, consequentemente, na anarquia, preconiza o ministro.

Nesses impasses, o Legislativo sempre escapa, pois não tem responsabilidade direta na crise. Já o Executivo tende a sucumbir, como sugerem os exemplos históricos.

Buraco negro, em astronomia, é uma força gravitacional tão poderosa que suga tudo, até a própria luz. É um lugar misterioso em que até as estrelas são tragadas para nunca mais brilharem.

Esta é uma metáfora bem mais dramática do que “à beira do precipício” ou “fundo do poço”. Foi isso que disse o ministro: “No fundo do poço já estamos”.

Sul x Norte

Essa situação não é exclusiva do Executivo da União. Pega também os estados (e municípios), embora de forma diferente em cada região. No Norte e Nordeste, não obstante seus efeitos negativos, acaba contrabalançando os prejuízos, pois os recursos da previdência e da seguridade funcionam como um mecanismo de transferência de renda do Sul para o Norte.

Sai renda das regiões mais ricas para as mais pobres. É aquela máxima: não existe almoço grátis. Alguém paga pelo ICMS e ISS embutidos no consumo dos inativos desses estados. No “Sul Maravilha”, o “precipício” assusta seus governantes.

Essa diferença é acentuada nas declarações feitas ao jornalista Edgar Lisboa, do Jornal do Comércio de Porto Alegre, por dois deputados federais. Do Nordeste, o deputado Daniel Coelho (Cidadania-PE) diz que não se discute reforma da previdência se não se retirar do projeto os estados e municípios: “É inegociável”, diz o parlamentar, refletindo uma tendência das bancadas que, somadas, são majoritárias nas duas casas pelo conceito de regionalidade.

Deputado x deputado

Giovani Feltes

Já do Sul tem outra visão. Ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, o deputado Giovani Feltes, do MDB, sugere que os governadores do Norte e do Nordeste estariam fazendo jogo duplo: “Um universo de governadores, especialmente nessas duas regiões do País, fazem, muitas vezes, um discurso de necessidade da reforma quando vêm à Brasília, mas lá nos seus quintais eles acabam falando que a reforma tira dos pobres, o que é ruim”.

À essa ambiguidade, ele acrescenta outra que se espalha pelas assembleias legislativas de todo o País. Os deputados estaduais jogam toda a responsabilidade pelos efeitos negativos das reformas nas bancadas nacionais, deixando os deputados federais expostos à execração de seus eleitorados.

Uma situação cômoda, diz Feltes: “Hoje, eles (os deputados estaduais) dizem que são contra porque não são eles que vão votar. Nós (os federais) ficamos com todo o ônus de desgaste aqui e, amanhã, eles disputam para federal, e ficam numa boa”.

Paralisação

Essa disparidade regional, revelada politicamente, tende a paralisar o Congresso para além das divergências ideológicas e disputas partidárias ou mesmo eleitorais. Também no passado outras reformas esbarraram nessa realidade.

Ruy Barbosa

As reformas de Rui Barbosa (durante o encilhamento) realizaram-se numa janela de apagão legislativo. Foi um remédio amargo, mas que resultou num fantástico processo de prosperidade, como narra o historiador Jorge Caldeira em seu livro “História da Riqueza no Brasil”. A Águia de Haia foi derrotada em duas eleições para presidente.

Também Getúlio Vargas, no Estado Novo, fez uma reforma profunda de toda a estrutura econômico-social do País, em que se destaca, neste momento, a CLT e a organização da previdência social ainda em vigor. Saiu tudo num canetaço.

João Goulart

Na década de 1960, o presidente João Goulart tentou encaminhar reformas pela via parlamentar obtendo, inclusive, uma licença para legislar por decreto, as chamadas Leis Delegadas, mas não conseguiu botar seu projeto em prática. Derrubado por um golpe militar, seus sucessores criaram um curioso mecanismo de fazer as reformas pela via congressual, mas sem depender de maiorias parlamentares.

Foi o insólito “Decurso de Prazo”, um dispositivo regimental que considerava aprovado em 30 dias de tramitação qualquer proposta do Executivo que não fosse votada pela Câmara dos Deputados (naquele tempo o Senado era apenas casa revisora). Com isto, eles transformaram em lei todas as propostas de Jango e mais as da direita legislativa, reformando praticamente todo o sistema econômico e trabalhista do País.

Parlamentarismo?

Os observadores da cena brasileira acreditam que não haverá como impedir o salto no escuro. Nenhuma força política conseguirá consenso para uma proposta salvadora.

A tendência será o recurso à espiral inflacionária para acertar as contas do governo, com todas suas consequências políticas e econômicas. Diante disto, voltam as duas questões que estão aparecendo nas conversas ao pé do ouvido, que ninguém ousa falar da boca para fora: parlamentarismo para dar responsabilidade ao Congresso e eliminar o presidencialismo de coalizão.

E, de outro lado, a volta da disputa acirrada entre as regiões, aberta com a distorção da proporcionalidade introduzida pelo presidente Ernesto Geisel no Pacote de Abril. Mais um teste para a unidade nacional nestes tempos que se aproximam dos 200 anos da independência, um movimento que teve como grande legado essa irreconhecível unidade nacional.

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