Inimigo externo é o refúgio de ditadores encurralados. A Venezuela pegou um bode expiatório para cada fronteira: acusa o governo do Brasil de abrigar assaltantes num quartel na fronteira, e a Colômbia de estar por traz da conspiração.
É a primeira fagulha. Havendo escalada, pode chegar às vias de fato. Nada de guerra, mas incidentes e arranca-rabos suficientes para manter o público interno em tensão. É o modelo.
A fórmula é simples. Os povos brasileiro e colombiano são amigos da Venezuela, mas seus dirigentes perversos. Neste caso, os direitistas Jair Bolsonaro e Iván Duque Márquez estariam a serviço de ideologias inconfessáveis para submeter o bom governo de Caracas.
Só falta dizer que são agentes do imperialismo norte-americano (de fato, Maduro insinuou que Duque estaria preparando terreno para um desembarque ianque na América do Sul). É sempre assim.
A fagulha que espocou na localidade de Luepa, na fronteira, próxima à Pacaraima, tem potencial para crescer. Na reclamação feita por um ministro do governo, Jorge Rodríguez, há uma acusação clara de acobertamento do grupo que atacou o quartel do Batalhão de Selva Mariano Montilha, no Sistema Territorial de Defesa.
Ou seja, não do Exército da Venezuela, mas uma espécie de força de segunda linha, como as antigas forças públicas dos estados brasileiros no passado. A acusação é grave por ser oficial.
É precipitado esperar uma crise real. Por maior que seja a gritaria, não deve passar dos microfones, sem chegar às armas. Entretanto, essas situações sempre podem sair de controle. A história está cheia de exemplos das forças da insensatez. É prudente o Itamaraty botar as barbas de molho.
Paz nas fronteiras
Um frente a frente com a Venezuela seria algo totalmente descabido para o Brasil. As demarcações de fronteiras entre os dois países realizaram-se para lá de pacificamente, ao contrário dos demais limites com nossos vizinhos, que se fixaram em disputas, confrontos, ameaças e guerra aberta.
É verdade que o Brasil surrupiou dos hispânicos mais de seis milhões de quilômetros quadrados, algo maior do que a Europa Ocidental dos tempos da Guerra Fria. Foi tudo conquistado a solado de botas e chumbo de bacamarte pelos bandeirantes paulistas.
As bases desses limites foram acertadas ainda nos tempos coloniais, entre Portugal e Espanha, numa série de tratados, cujo centro é o Tratado de Madri, de 1750. Mas ficaram pontas e pendências ao longo dos 15.735 km de serras e rios.
Já independente, o Brasil teve de negociar aqui e ali. Correu sangue e, com exclusão da Guiana Holandesa e da Venezuela, houve guerra aberta e cruenta com Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia e França (no Amapá). Com o Inglaterra (Guiana), Peru e Colômbia tivemos movimentações de tropas, ocupações militares de territórios contestados e confrontos à beira do conflito aberto. Não foi fácil, até o Barão do Rio Branco, no início do século XX, concluir tratados perfeitos juridicamente que hoje são incontestáveis sem nenhuma pendência de um metro que seja da soberania brasileira.
Ao contrário dos demais vizinhos, as relações com a Venezuela se iniciaram e se mantiveram sem rusgas. Um primeiro protocolo, em 1852, traçou as bases, e, em 5 de maio de 1859, o plenipotenciário brasileiro Felipe Pereira Leal e sua contraparte venezuelana, Luiz Sarroyo, firmaram o Tratado de Limites e Navegação que, além de fronteiras, trazia juras de amor eterno.
Está em vigor e diz: “Haverá paz perfeita, firme e sincera entre Sua Majestade, o Imperador do Brasil, e seus sucessores e seus súditos, e a República da Venezuela e seus cidadãos em todas suas possessões e territórios respectivos”. Para não ficar dúvida, em 1929 o documento foi ratificado no Rio e Caracas. Dito e feito.
Bolsonaro, o adversário
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, escolheu o brasileiro Jair Bolsonaro como seu antagonista. Este tem o perfil: é de ultradireita, execrado pela mídia internacional e, principalmente, está pegando no seu pé.
Só isto pode explicar alguma escalada retórica. O fato em si da reclamação é muito frágil. O governo da Venezuela denuncia que o mandante do assalto ao quartel está homiziado no Brasil.
O mandante seria um venezuelano traficante de ouro (não de drogas, nem de armas), Andrés Antonio Fernández Soto, o Toñito. Não seria de admirar se ele tivesse negócios escusos com policiais ou funcionários brasileiros, como é bastante comum entre agentes da lei e contrabandistas de luxo, como este, de metal precioso. Nessas fronteiras são figuras de destaque.
Uma elevação do tom é improvável, mas ações concretas de hostilidade armada seriam imediatamente contidas pelos organismos internacionais, como Nações Unidas e OEA. O maior perigo seria nas fronteiras colombiana com a Guiana Inglesa, onde há contenciosos políticos e territoriais muito fortes.
Por isto mesmo, Maduro atacar o Brasil será o menos perigoso para introduzir o inimigo externo e desviar a atenção dos problemas da crise interna. Afinal, nenhum dos dois, Nicolás e Jair, tem papas na língua.