Saímos do Chile às 6h da manhã da quarta-feira, 23 de outubro, com a certeza de que tão cedo as coisas não irão amenizar totalmente no país. Se a vida em Santiago e em seus arredores começava a parecer querer retomar ares de normalidade, em contrapartida as manifestações de protesto ensaiavam se espalhar pelo restante do país. Na pacata cidade turística de Pucón, onde estávamos antes, e onde normalmente a rotina só é interrompida de vez em quando pelas erupções do vulcão Villa Rica, que assoma sobre a cidade, ou por um e outro tremor de terra, as passeatas se iniciavam. Como também em Temuco, onde está o aeroporto mais próximo de Pucón.
Até então, pareciam maiores ali as preocupações, entre os índios Mapuche, com a possível construção de hidrelétricas que os ameaçam de remoção das terras ancestrais que ocupam há milênios. Ou, entre a população local, de novas estradas asfaltadas que facilitem demais o acesso aos rios, lagos e vulcões que dão nome à região, ameaçando o controle de um tipo de turismo sustentável que respeita a natureza.
A ira que se iniciou no fim de semana em Santiago, porém, avança sobre a faixa estreita e comprida de terra, a tripa que forma o Chile na parte oeste do continente sul-americano. Porque, da mesma forma, pouco tem a ver com a causa inicial, o aumento de 30 pesos na passagem do metrô, algo em torno de R$ 0,20. Curioso que seja o mesmo valor do aumento das passagens de ônibus em São Paulo que marcaram o início das manifestações de protesto no governo Dilma Rousseff. Porque, no Chile agora como no Brasil de Dilma, os protestos não eram só pelos R$ 0,20. O que estourou foi um poço de insatisfação que vinha latente desde que o país optou pela implantação das medidas neoliberais que até então eram um modelo de sucesso a ser seguido por outros neoliberais do planeta – como nosso ministro da Economia, Paulo Guedes – e se tornam agora um vigoroso sinal de alerta.
Formávamos um grupo de quatro jornalistas que viemos ao Chile a convite da Latam no voo inaugural da linha direta que agora liga Brasília a Santiago três vezes por semana, às terças, quintas e sábados. O voo foi inaugurado na terça-feira, dia 15. Na programação conferida para o Press Tour, tivemos a sorte de deixar Santiago um dia antes do início dos protestos. Nada parecia indicar que a cidade estouraria, agora já com 18 mortos desde o princípio das manifestações. Em Pucón, o que chegava eram reflexos. Como o cancelamento e atraso de voos, que nos obrigou a ficar no Chile dois dias a mais que o previsto inicialmente.
No momento da nossa saída do país, ficava claro o pavor do presidente Sebastián Piñera na sua tentativa de acalmar a situação após a sua desastrada reação inicial. Quando os protestos estouraram, Piñera resolveu ser duro. Decretou Estado de Emergência. Colocou as tropas militares na rua para reprimir as manifestações. Decretou toques de recolher que variam de extensão conforme as coisas melhoram ou pioram em cada região. No desastre inicial, chegou a dizer que o país vivia uma situação de guerra. Não poderia ter dito nada pior. Afinal, ele tenta conter manifestações do próprio povo do Chile. Declarara, então, guerra aos próprios concidadãos que preside. As ruas fervem aos gritos de “Fuera Piñera!”
Visto que tal reação só fazia colocar na sua conta mortos que já vão a 18, Piñera procurou negociar. Anunciou na noite de terça-feira, um pacote de contrarreformas que começa a ameaçar colocar por terra o ideário neoliberal chileno que tanto encanta a outros economistas como Paulo Guedes. Melhora no valor de aposentadorias, redução do valor de contribuições pagas, foram coisas que ele anunciou em seu discurso. Que não arrefeceram a disposição da oposição, que agora sugere uma greve geral no país.
O belo palácio que serve como sede do governo chileno foi em seu início a Casa da Moeda. É por isso batizado de Palacio de La Moneda. A política neoliberal adotada pelo Chile é como as moedas que ali já foram cunhadas: tem dois lados. Fez o país dar um grande salto de desenvolvimento. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita chileno é 60% superior ao brasileiro. As projeções indicam um crescimento de 3% na economia do país, enquanto as previsões no Brasil ficam abaixo de 1%.
Em contrapartida, tal modelo aprofundou fortemente a desigualdade social. Uma desigualdade que as ruas de Santiago não mais conseguem esconder. Há dezenas de acampamentos de sem teto espalhados em praças da cidade. Muitos são migrantes haitianos e venezuelanos. Mas há ali chilenos também. Grandes favelas distribuem-se em diversos pontos da periferia da capital do Chile. É o resultado de toda uma rede de proteção social que desmoronou nos últimos anos.
O Chile gasta 25% menos que o Brasil na educação pública, por exemplo. O modelo de capitalização da previdência passa os seguros para a iniciativa privada, aumentando os gastos individuais e reduzindo benefícios. Tudo isso resultou num grande aumento da desigualdade social. O Chile hoje só perde para o Qatar e para o Brasil em termos de desigualdade entre o conjunto da população em comparação com o 1% mais rico.
A insatisfação latente com a situação estourou no fim de semana. E pode resultar em um conjunto de contrarreformas que, de alguma forma, retomem ao menos parte da rede de proteção social do país. Caso contrário, as ruas chilenas poderão pegar fogo novamente.
O que parece claro neste momento é a sensação de que o governo compreendeu os recados das ruas. Embora Piñera reclame das manifestações mais violentas, que levaram a saques e às mortes, cujos responsáveis o presidente chileno chamou de “delinquentes”, o chamado à negociação contrasta com a posição inicial do governo ao decretar o Estado de Emergência.
Para alguns analistas, ao decretar o Estado de Emergência e entregar a segurança aos militares, Piñera teria pretendido trazer de volta a sensação de terror dos tempos da ditadura militar de Augusto Pinochet para amedrontar os manifestantes. O problema: quem protestava não viveu tal tempo, não tinha memória dele e pagou para ver.
No caso dos voos domésticos e internacionais, a situação ainda está longe de se normalizar. No Aeroporto de Santiago, foram instaladas diversas camas de campanha onde dormem passageiros de voos cancelados. Somente da Latam, desde o início dos protestos, mais de 300 voos tiveram cancelamento. A situação já se normaliza, com cerca de 98% da operação retomada. Mas é preciso realocar passageiros que perderam suas conexões.
Para esses passageiros, se deslocar para fora do aeroporto era até a quarta-feira, quando deixamos o Chile, tarefa complicada. Os hotéis mais próximos do aeroporto estavam lotados. E o toque de recolher então decretado entre 20h e 6h da manhã complicava ainda mais o deslocamento. Para chegar ao aeroporto, os bilhetes de passagem servem de salvo conduto. Para sair, porém, é preciso pegar um documento no posto dos Carabineiros justificando a necessidade do trânsito. Do contrário, sair é risco de prisão. Na terça-feira, muitas lojas do aeroporto ainda estavam fechadas porque os funcionários não conseguiram chegar para trabalhar. Na quarta, ainda havia lojas fechadas, mas a situação já estava mais perto do normal.
Ainda que as coisas tendam a se normalizar, o Chile é uma panela de pressão. Aparentemente, o governo chileno compreendeu isso e recua da tentação repressora inicial. Se, para os países vizinhos que ensaiam arroubos liberais semelhantes, a situação serve de alerta, que se preste, então, atenção também a isso. Piñera aprendeu em poucos dias que a cara feia dos carabineiros não era o melhor caminho para diminuir a pressão da sua panela.