Nas discussões acerca da descriminalização do aborto no caso de fetos até a 12º semana é possível discutir se uma saída legislativa não seria mais prudente e equilibrada, contudo, dizer que o Supremo Tribunal Federal (STF) legisla ao avaliar a questão é um equívoco grave.
Em primeiro lugar, é de competência e legitimidade de Cortes Constitucionais, como o STF, analisar conflitos de direitos e ponderar valores à luz dos princípios constitucionais, ou seja, verificar se o ordenamento jurídico vigente atende o que premissa a Lei Maior do país, a Constituição Federal (CF).
Há diversos precedentes nesse sentido. A permissão das biografias não autorizadas, a garantia da união civil entre pessoas do mesmo sexo e a inconstitucionalidade da lei de imprensa estão entre as mais conhecidas ações em que o STF assegurou direitos considerados invioláveis. Como já explicou muito bem Leonardo Sakamoto, no UOL, isso acontece porque muitas leis ordinárias são anteriores à CF de 1988 e, portanto, cabe ao Supremo verificar o que ainda é válido.
Decidir casos assim não é uma jabuticaba e nem uma inovação do protagonismo global que o Judiciário vem tendo na última década. Há 45 anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Roe vs. Wade, derrubou dezenas de leis estaduais e federais que proibiam ou restringiam o aborto. O judiciário americano assim decidiu com base no direito constitucional à privacidade, também previsto na nossa Carta Magna no Art. 5º.
Mas a Constituição de 1988 vai além. Também no Art. 5º são garantidos outros direitos fundamentais e sociais que, em consonância com as convenções internacionais, asseguram um arcabouço jurídico que possibilitam o debate do assunto no Judiciário. A garantia da inviolabilidade do direito à vida, bem como do direito à saúde, à liberdade, à igualdade e à segurança são algumas das regras constitucionais em discussão.
Por isso, é preciso separar a liberação do aborto, essa sim uma pauta legislativa, da análise constitucional de uma lei que pune mulheres e médicos que praticam o ato. É necessário saber se há violação da dignidade da pessoa humana, pilar do Estado Democrático de Direito, na criminalização da prática. E se, no contexto social, a aplicação da lei penal trouxe resultados e atendeu a princípios constitucionais.
Ou seja, o Supremo Tribunal Federal não vai liberar ou proibir o aborto. Ele vai dizer, utilizando informações técnicas trazidas nas audiências públicas, se a lei que penaliza quem comete a prática viola direitos fundamentais das mulheres e dos médicos e, no caso de violar, se a não-criminalização da prática infringe direitos do feto.
Desse modo, sem entrar no mérito da questão, é preciso oferecer ao STF, já que foi provocado, a oportunidade de cumprir sua função institucional e constitucional. Especialmente, porque no caso específico há no comando dos trabalhos e na relatoria da ação a ministra Rosa Weber, uma juíza equilibrada, responsável e prudente, que saberá levar as discussões nas estritas, porém necessárias, competências do Supremo.