O tempo regressivo não é um absoluto, pois sujeito à reversões. O modus operandi da dupla Trump/Bolsonaro foi contido, felizmente. Em 2020 e 2022, ambos foram barrados em seus propósitos autocráticos.
Atacada, a democracia logrou afirmar-se como um meio em si mesma para intermediar tensos interesses, efetivando o estado de Direito. A democracia permite, na falta de outro sistema melhor, mediar conflitos que, nas mãos de um ditador, seguem o caminho das soluções mais fáceis típicas do poder centralizado e não sujeito a qualquer controle: aquele das decisões ditadas por cima cuja legitimidade inquestionável resulta da manipulação das massas, teorias conspiratórias, delírios anticomunistas, obscurantismos, sob controle de populistas autoritários.
Por sorte e ação política essa página brasileira foi abortada em favor da esperança. Mas há pedras no caminho de todos responsáveis por um mundo melhor. Bolsonaro saiu. O bolsonarismo permanece em configurações múltiplas. Sem superação de arcaísmos, preconceitos, típicos de uma formação social tardia, a jornada democrática será mais árdua, longa, cheia de avanços e recuos. Visões distorcidas das coisas encontram-se em todos e em tudo, pessoas e instituições, teorias e luta social, independente de ideologias devendo merecer reflexões e mudanças de comportamentos. Para combater o bom combate, de ideias.
Pois bem, nessa tendência de regressão social, mesmo quando contida, reproduzem- se em várias tribos multicoloridas as mesmas confusões afetivo-cognitivas que possibilitam a absurda ascensão da extrema direita em desfavor da democracia liberal e o despertar de certo Lenin. Para os extremos a democracia é considerada um entrave ao projetos ultraliberal e socialista (na versão mais objetivamente antidemocrática, da empoeirada ditadura do proletariado). Vejam duas dessas confusões mentais que unem e complementam algozes e vítimas, derrotados e vencedores, direita e esquerda, atravancando o progresso.
Tomo como tipo-ideal para este artigo, inicialmente, amigos bolsonaristas, aqueles de boa fé. Eles existem e constituem o setor muito mais amplo no bolsonarismo. E são muito importantes como são importantes milhões indivíduos que optaram por votar, diante de tantas frustrações e desinformações, num Capitão de conduta nada ilibada. Eles foram arrastados, num momento de medo e insegurança, por atraentes discursos tão simplificadores quanto mentirosos. Esses brasileiros encontram-se muito próximos de todos nós, na família, entre conhecidos, açougueiros, padeiros, donos de bar, funcionários de farmácias, vendedores autônomos, cônjuges, corretores, domésticas, zeladores, etc. São seres humanos que guinaram politicamente para um lado (mais à direita) e podem mudar no curso do discernimento que a prática da democracia permite. A mudança nas preferências eleitorais respondem mais a resultados favoráveis na economia que a preferências partidárias ou ideológicas.
O maldoso carimbo de “fascista” é similar àquele que justificou os progrons (vale a pena rever “Um violinista no Telhado”), depois modernizado e ampliado por Stálin com seus Gulágs, denunciados por Alexander Soljenitsin. Insistir em rotular os diferentes como seres abomináveis parece atitude típica de personalidades maniqueístas, cegas na paixão sem preocupação com as consequências políticas do agir preconceituoso.
A quem serve combater e vencer o ódio alimentando-o? Ao obliterar o campo de atração política, sem o qual o governo de Lula será ainda muito mais difícil, as alianças possíveis legitimadas em bons resultados económicos serão retardadas ou prejudicadas. Uma verdadeira traição a Lula (da parte de autodeclarados revolucionários), um gênio na arte de conciliar e somar, sem a qual não chegaria três vezes ao poder máximo e sequer a concluir este novo mandato.
Já me afastei de muitos fanáticos que ao amanhecer pós-derrota de Bolsonaro, no dia 30 de outubro de 2022, escorados no delírio da “fraude” nas urnas eletrônicas, passaram a defender a anulação da votação; prisão de Alexandre Moraes e outros ministros do STF; até a eliminação de “vermes petistas” e, finalmente, um golpe militar, pateticamente esboçado em pálidas manifestações de caminhoneiros e num exército de Brancaleone na frente de quartéis, financiados por uma dúzia de empresários destrambelhados como o véio da Havan e outros, mas também com eventos violentos como as invasões e depredação do patrimônio público no dia da diplomação de Lula.
A loucura é de todos. Não é aceitável a sandice da moda, a de um Brasil povoado pelo maior número de fascistas do mundo (ver “Fascismo”, texto de um autor com pseudônimo Xixo). Um livro cômico objetiva ensinar a falar com um fascista (ver “Como dialogar com um fascista”, de Márcia Tiburi). A tese de um Brasil cheio de fascistas é improvável empiricamente, um chute em termos conceituais e uma postura restritiva, senão reacionária no fazer política. Ou teremos que corrigir “A Introdução ao fascismo” de Leandro Konder e “Fascismo e Ditadura” de Nicos Poulantzas, entre outros estudiosos do tema, esquecendo os seus pressupostos históricos de emergência (alguns deles presentes, muitos outros não), e acrescentando, curiosamente, outro vetor presente na meteórica ascensão de Bolsonaro uma mistura de Duce e Führer, combinados: a adesão reativa e prodigiosa de milhões de cidadãos ao lulopetismo. Nesse sentido, o fascismo ou protofascismo tupiniquim tem no seu DNA uma relação umbilical com as desventuras lulopetistas… Voltemos ao caráter do cotidiano fascista, no qual pessoas boazinhas servem a projetos de morte, como Hannah Arendt comentou em seu ” Eichmann em Jerusalém”.
Tomar irmãos, esposos, cunhados, colegas de trabalho, amigos, como fascistas, portanto, cúmplices de um governo pré-supostamente fascista e, pasmem, genocida, somente têm sentido na política menor dos que a definem a partir de uma surrada dialética de botequim, uma patética luta de classes travada entre amigos e inimigos, reciprocamente. Logo o Aurélio vai reconhecer adversários como sinônimo de inimigos. E amigos como aqueles entusiastas e partícipes do Transformismo sua segunda versão.
René Girard estudou a mimética sacrificial dos bodes expiatórios com seus mecanismos imanentes de violência, fugas, recalques e pertinência tribal. O outro que não está do lado certo de dado agrupamento (ou da história), seita, igreja, é ruim e nada mais ruim nos dias de hoje que o ser fascista, nazista, genocida. São os bodes da vez.
Silêncios refugiam e preservam seletivamente símbolos e memória das formas históricas do totalitarismo. Entre elas o comunismo teve um lugar tão nefasto quanto o dos nazistas. Silêncio também quanto a certos socialistas de raiz, marxistas leninistas com suas foices e martelos recalcitrantes e convictos com a tão anunciada morte da democracia liberal, burguesa, cedendo espaços para uma outra democracia igualmente adjetivada, a proletária ou dos trabalhadores. Amigos lulopetistas vão gritar: mas são coisas diferentes fascismo e comunismo, como você pode aproximá-los? É possível, necessário e urgente.
A memória histórica do nazismo e do stalinismo é o registro de terror similar, terror de Estado, opressão e eliminação sistemática de opositores e, pasmem, de genocídios e etnocídios. Não custa rememorar a ojeriza à alteridade e ao pluralismo, em nome de uma anacrônica defesa radical da tradição e dos costumes diante de um mundo multicultural a exigir práticas interculturais, não a sua supressão. Jamais esquecer cada fato histórico no seu contexto e textos. Mormente quando profetas e adivinhos consideram o Brasil como o país com o maior números de brasileiros abjetos, ou fascistas, de acordo a uma estatística talibã. Dessa premissa delirante pode derivar outra, no limite do exagero e da ira por “fascistas”: o que fazer com esses mais de cinquenta milhões de seres humanos doentes? Imaginem a convulsão social. Famílias polarizadas no clima quente pré-eleições passariam, insuflados pela propaganda algorítmica e armamentos ilimitados, a uma caça às bruxas, segundo a fúria com o mais imediatos fascistas localizados nos espaços domésticos e vizinhos, nas confrarias de esporte e culinária, nos clubes de futebol e nos locais de trabalho.
O outro é o avesso falsificado de uma simbologia de poder, poder de purgação, expiação, morte e vida sobre qualquer ser humano, inclusive o indivíduo “bem normal” , o nosso médico ou fisioterapeuta, aquele morador do apartamento contíguo, sorridente e pai carinhoso, nossas mães queridas e religiosas, todos, a serem anulados, desmoralizados, cancelados, reduzidos a uma subjetividade somente passível de cuidados psiquiátricos ou da proscrição política.
Não há dúvidas sobre os estragos (inclusive nas fileiras progressistas) causados pelar reincidências escandalosas na corrupção da “esquerda transformista” (a da opção na direção do Capital, melhor, de seus agrados e proveitos). Sem a ojeriza ao PT e coligados desde o ano de 2002, não seria possível às forças conservadoras a guinada da direita conservadora para a extrema direita “fascista” tupiniquim. Bolsonaro é a personificação da atualização de muitos arcaísmos somente possível graças à sucessão de falcatruas nas hostes petistas e aliados, capitalizados no espetáculo midiático no qual a Lava Jato e seus proxenetas foram as videntes da Justiça no seu avesso
Mas são muitas as confusões em tempos regressivos com seus efeitos de dissonância cognitiva.
Autoritarismo e totalitarismo guardam muitas identidades, mas são fenômenos históricos bem distintos. Regimes autoritários não eliminam totalmente as intermediações institucionais da democracia representativa, mantendo alguns canais de interlocução. No totalitarismo a comunicação entre massas e líder dá-se diretamente e de forma total, homogenizando nas induções ao consumo ou ao voto, sem a nínima possibilidade de liberdade e controle sobre o sistema de poder arbitrário.
A ditadura militar no Brasil (1964-1985) pode ser definida como um regime ditatorial, mas não totalitário, como o nacional socialismo de Hitler e comunismo de Stálin. Não distinguir as experiência de autoritarismo e de totalitarismo implica muitas coisas em termos de desmemoria histórica: a perda da capacidade de compreender tanto o funcionamento da violência estatal em tempos de vazio político como as suas proporções em grau e a extensão na negação dos direitos fundamentais. Ademais, essas desmemorias, ao equiparar duas experiências tão díspares, implica nos dias de hoje numa dupla miopia na ação política com efeitos perversos e reacionários, repito. Com relação ao passado, minimiza o terror e padroniza para baixo os seus graus institucionais de opressão e exclusão sociais; equivalendo-as ao que testemunhamos nos dias de hoje em vários países do mundo como eventos autocráticos (o leitor poderá comparar os sistemas de poder distantes da democracia liberal (ou”iliberais”) tais quais o de Putin, Viktor Orbán, Maduro, Xi Jinping, Recep Ordogán, Miguel Díaz-Canel, entre tantos outros, com o exercido presidencial de Bolsonaro.
Um autor definiu democracia como um sistema no qual um dirigente pode ser retirado pelas urnas. Malgrado tudo, com ou sem Bolsonaro vamos ensaiando a vivência das instituições representativas modernas. Daí o cuidado com generalizações promíscuas, inverificáveis, na condição turva e armadilhosa típicas de um entorpecimento que não findou dia 30 de outubro.
Na mesma linha de distinções, fascismo e nazismo são formas totalitárias que não significam a mesma coisa. Nem entro na questão de um projeto de “raça superior” nem no problema milenário dos genocídios. Eles não começaram tendo como vítimas os armênios. Eles ocorreram, prá dizer pouco sobre a “pequena janela cronológica”, por exemplo, retornando de 1911 ao que é considerado o primeiro genocídio, perpetrado pelos romanos em Cartago (146 A.C). O fato do termo genocídio ter sido cunhado somente em 1943 por Raphael Lemkin, polonês de origem judaica, para se referir a crimes na Armênia e no holocausto não exclui outros, como o ocorrido na Circassia (1864-1867), quando russos mataram, no Cáucaso, 90% da população.
Genocídio é extermínio de um povo. Etnocídio é extermínio de uma cultura. São coisas diferentes mas relacionados. No Brasil houve genocídios e etnocídios de certos povos e culturas indígenas, desde 1500.
A irresponsabilidade de Bolsonaro na questão da gestão da pandemia pode configurar muitos ilícitos, mas genocídio não parece remetê-lo a um julgamento juridicamente embasado na tipicidade penal inquestionável, jurídica e politicamente, vale dizer, com isenção segundo critérios de Justiça, seja no STF, em Haia ou em outro tribunal internacional.
Afirmar que Bolsonaro organizou o extermínio no caso de boa parte dos mortos na pandemia da Covid (aliás, a questão vai ser apreciada pelo STF) é algo tão exagerado como tomar o bolsonarismo como fascismo e, pior que isso, identificar seus mais extremados seguidores como fascistas, atribuindos culpa objetiva por força de um estranuo “domínio de fato”.
Com a vitória de democracia oxalá possa ser aberto e exercido um efetivo canal para autocríticas nas fileiras do governo, dos intelectuais do campo progressista, analisando o que há algum tempo autores um tanto descartados, embora de esquerda, já alertavam como problemas antigos na teoria e na governabilidade que entram, confundem, enfim alimentam as forças da barbárie (ver Ruy Fausto, Eurelino Coelho, Renato Jeanine Ribeiro, José Arthur Giannotti, Chico de Oliveira, Marco Aurélio Nogueira, entre tantos outros esquecidos por militantes, elites acadêmicas e burocracias partidárias).
Sem ilusões, e por fim, com Tim Maia. Na música “Festa de Santo Reis” temos outro alerta quanto à comemoração, um dia esquisito, a chegada dos músicos e o risco de levarem tudo, até o bode.
Hoje é o dia do Santo Reis
Anda meio esquecido
Mas é o dia da festa do Santo Reis
Hojé é o dia do Santo Reis
Anda meio esquisito
Mas é o dia da festa do Santo Reis
Eles chegam tocando sanfona e violão
Os pandeiros de fita carregam sempre na mão
Eles vão levando, levando o que pode
Se deixar com eles, eles levam até os bode
É os bode da gente, é os bode mééé…
É os bode da gente, é os bode mééé…
Hoje é o dia do Santo Reis (hum…)
Hoje é o dia do Santo Reis (Hoje é o dia)
Hoje é o dia do Santo Reis (É o dia da festa)