Nessa guerra maluca de versões, como sempre os fatos viram vítimas. Não só nas redes sociais, como costumam apregoar os jornais. Dessa vez, o efeito manada contaminou também as próprias coberturas jornalísticas. Quem nos últimos dias buscou informações sobre a votação na Câmara do pacote de Sérgio Moro contra a corrupção e o crime organizado ficou com a impressão que o ministro da Justiça tomou uma tunda. O Centrão comemorou, o PT e seus aliados bateram palmas, e a imprensa comprou esse embrulho pelo valor de face.
É fato que o pacote de Moro havia sido completamente desfigurado pelo grupo de trabalho escalado por Rodrigo Maia e sua trupe de líderes justamente com esse propósito de dar um chega para lá no ministro da Justiça e na Lava Jato. Piruetas à parte, o essencial do pacote, com o acréscimo de algumas melhorias propostas pelo grupo coordenado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, foi restabelecido no acordo que precedeu a votação em plenário.
Foram alterações relevantes. Resgataram algumas medidas essenciais para o combate ao crime organizado e à bandidagem em geral. As principais:
- Permissão para gravação de conversas entre advogado e preso em presídio de segurança máxima, desde que com autorização judicial fundamentada.
- Prisão após condenação por Tribunal do Júri, desde que a pena seja superior a 15 anos – penas abaixo de 15 anos podem gerar prisão imediata em casos excepcionais, com decisão fundamentada da Justiça.
- A infiltração de agentes para obtenção e produção de provas, desde que seja contra alguém que já esteja sendo investigado.
- A proibição de progressão de regime para presos ligados à organizações criminosas, desde que na condenação já tenha havido menção a essa ligação.
De acordo com a interpretação de muitos políticos e de boa parte da imprensa, o pacote de Moro foi um fiasco por sua derrota em dois dos seus pontos mais relevantes, além da recusa de outras propostas sem a mesma expressão. O principal ponto foi a rejeição da proposta para que as penas de prisão possam ser cumpridas após condenação em segunda instância. Quando Moro a propôs, chegou a ser ridicularizado, pela avaliação geral de que o tema por ser constitucional seria decidido pelo STF. Esse realmente era o script. Dele escapou pelo voto ao mesmo tempo decisivo e dissonante de Dias Toffoli que jogou a bola dessa regra sobre até aonde vai a impunidade para o Congresso. Ali, de um jeito ou de outro, virou consenso. E é justamente para a discussão dessa tema que Sérgio Moro voltou a ser recebido com rapapés pelo Parlamento. Sua ida à CCJ do Senado semana passada foi um passeio.
O segundo ponto é a excludente de ilicitude. Quem no começo de fevereiro assistiu ao vivo o anúncio feito por Moro de seu pacote contra a corrupção e o crime organizado percebeu claramente o seu incômodo em defender essa tal excludente de ilicitude. Ele justificou ali sua inclusão no pacote pelo como pagamento de uma das principais bandeiras de campanha de Jair Bolsonaro. Soou como um pedágio que ele topou para assumir o ministério da Justiça e Segurança Pública. Jogo jogado. De lá para cá nada mudou na impressão de ser uma licença para matar para uma polícia que já mata em excesso. É o tipo de derrota que se comemora. Assim avaliam alguns auxiliares de Moro.
Outras derrotas contabilizadas para Moro têm alcance bem menor. São questões que até podem ser reavaliadas mais adiante. É o caso, por exemplo, da ampliação do banco de dados de DNA para desvendar crimes. Moro queria estender para todo e qualquer tipo de crime doloso ( o que o autor teve intenção de cometer), mas a Câmara achou por bem, em nome do direito à privacidade, manter essa exigência apenas para quem cometeu crimes hediondos ou violentos. Nessa mesma toada, o tal Plea Bargain, sucesso na justiça americana no qual o investigado confessa o crime ao ministério público e, em troca de alguma punição acordada, se livra do processo judicial. Seu suposto mérito seria a redução da carga de processos que entulham a Justiça. Sua rejeição não afeta o jogo.
O que sobrou do aprovado na Câmara que parece um ponto fora da curva é a criação do juiz de garantias. A ele caberia presidir as investigações, fiscalizar a produção de provas, autorizar eventuais quebras de sigilo e medidas cautelares, mas não conduziria a ação penal. Isso ficaria a cargo de outro colega. É uma mudança que caiu de paraquedas. Ninguém sabe bem como isso funcionaria se aplicada de imediato na justiça país afora. Nem seus custos. A expectativa entre aliados de Moro é que seja barrada pelo Senado ou vetada pelo presidente Jair Bolsonaro.
A ilusão de que o pacote resultante da votação na Câmara foi uma grande derrota de Sérgio Moro pode ser desfeita com a tendência do próprio ministro da Justiça de pedir a seus aliados no Senado para o aprovarem sem qualquer mudança.
A conferir.