A cena parecia animadora. Muita gente acorrendo a um posto de vacinação contra a covid-19. Afinal, é o que o Brasil precisa, um grande número de imunizados.
Em reação à grande procura por vacina, com recorde de aplicações num único dia, a autoridade local promete interditar aquele sistema, chamado de repescagem. A represália contra quem busca imunizante, no prazo estipulado pela autoridade pública, é reprisada por governadores e prefeitos país adentro.
Parece nonsense. As pessoas querem uma vacina, mas o Estado, em vez de facilitar, dificulta e intimida. (Escolher não tem a ver com furar a fila ou tomar a terceira dose, que são fraudes.)
Jornalistas adotaram, sem questionamento e em tom de deboche, o discurso dos epidemiologistas, elevados à categoria de demiurgos. Jornalismo é duvidar, desconfiar. A ciência é imprescindível à melhoria da qualidade de vida, mas isto não coloca pesquisadores num pedestal inquestionável.
Se é verdade que estar vacinado é melhor do que não estar vacinado, é igualmente verdadeiro que as vacinas não são idênticas. É mais provável morrer de coronavírus do que de vacina? Sim, mas esta evidência não elimina a eventual fatalidade provocada por um imunizante.
Alguns argumentos são desprezíveis, como o de que “as pessoas nunca escolheram vacinas antes”. Sim, as pessoas eram submetidas a sangrias e cirurgias sem anestesia. Durante muito tempo, exames que emitem radiação eram a única opção. Assim como houve tempo em que a notícia chegava de navio. Hoje com mais informação, as pessoas podem tomar decisões sobre o que inocular em seus corpos. Um médico consciencioso oferece ao paciente mais de uma possibilidade de tratamento para uma doença. Muitas vezes recomenda um determinado caminho, mas a escolha é do paciente – que tem o direito, inclusive, de adotar a opção mais arriscada.
E se eu for o sorteado?
Do ponto de vista coletivo faz sentido a abordagem estatística. Uma população vacinada tem menor probabilidade de morrer ou ter uma sequela grave do que outra não vacinada. Esta conta não existe no plano pessoal. Se o indivíduo é a 1/1.000.000 vítima do efeito adverso de uma vacina, esta probabilidade salta aos 100% para o desafortunado. Portanto, a escolha de correr risco, por menor que seja, é individual.
Que tal tomar uma vacina que, aplicada largamente num determinado país, mostrou índices de efetividade inferiores a outra utilizada em outro país? E se a vacina provoca uma sequela grave ou pode levar a óbito? E quando as autoridades sanitárias de um país decidem suspender o uso de um imunizante? Quem vai para outro país (que adota restrições à entrada de não residentes) deve relegar sua viagem à loteria dos pontos de vacinação? E se uma fábrica de vacinas está instalada num país de regime autoritário? Uma epidemiologista, em tom irônico, disse que as pessoas não entenderam nada. Que tal explicar, , doutora?
Sim, há indivíduos egoístas e aproveitadores neste grupo. Mas existe gente como uma atriz famosa que foi patrulhada pelo medo genuíno em relação a uma determinada vacina. O medo de que você seja a infinitesimal vítima fatal é legítimo.
Um rápido levantamento indica que a maioria dos países não permite ou não recomenda a escolha do imunizante. Mas isto não é regra.
Singapura, Sérvia, EUA (Indiana e Califórnia, por exemplo; no site da CDC, a resposta é genericamente “sim”) e Alberta (Canadá) permitem a escolha. Finlândia, Japão, Inglaterra e Austrália oferecem algumas opções. A Alemanha anuncia que, em breve, a escolha será possível. Obviamente dentro das marcas e quantidade de vacinas adquiridas.
Chama a atenção o site do Ministério da Saúde da Austrália. Há um aviso explícito sobre os “riscos e benefícios” de determinada vacina. Alerta, aliás, repetido em sites oficiais de outros países.
Ciência, por sua natureza, não é definitiva. Ao longo da história, certezas revelaram-se equívocos. Verdades tidas como absolutas passaram a ser condicionadas a variáveis – a astrofísica é um exemplo disto. No caso da covid-19, a cada dia os terráqueos são expostos a informações científicas desdizendo o que se sabia até o dia anterior. Nenhum assombro, já que a velocidade com que os imunizantes foram testados e disponibilizados foi alucinante. Os riscos, aceitos pelos cientistas e autoridades, são inerentes à pressa.
Estorvo são os negacionistas
Em vez de adotarem medidas coercitivas, as autoridades deveriam prestar atenção nos que não tomaram a segunda dose, naqueles que ainda têm dúvidas sobre a necessidade da imunização, na população obrigada por contingência financeira a se expor diariamente em aglomerações e nos negacionistas com suas crenças obscurantistas.
Alguns países lidam com este estorvo, o de convencer os cidadãos a procurar os postos e injetar qualquer imunizante, mesmo que seja um escolhido. Isto é um problema real em nações como EUA (48% imunizados, segundo o Our World in Data), Filipinas (4%), França (40%), Sérvia (39%) e Alemanha (46%).
“Por que tanta gente é contra a vacina?” foi o título de reportagem recente da Deutsche Welle. [“This goal [herd immunity] can only be reached if skeptics and refusers can be convinced to get vaccinated“.] Emmanuel Macron, na França, decidiu proibir a entrada de não vacinados em, por exemplo, cafés e eventos esportivos. Nas Filipinas, Rodrigo Duterte foi menos sutil e ameaçou prender quem não se vacinar.
Em momentos de pânico, a razão titubeia e a emoção medra. Caso não consigam atender a demanda da cidadania, autoridades precisam construir gestão inteligente para esclarecer as dúvidas e oferecer opções. Cidadãos que querem se vacinar não são problema, mas parte da solução.
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Caso interesse aos meus 17 leitores. Quando retornava de uma rápida saída de carro deparei-me com uma carreata de negacionistas na avenida principal de Brasília. Ao rapidamente desviar da marcha, avistei dois pontos de vacinação. Como não havia filas e minha vez havia chegado, decidi aproveitar. Entrei e vacinei-me sem me programar. Descobri a marca do imunizante depois de preencher o cadastro. Não abdiquei da máscara nem do álcool gel, e ainda estou cogitando me tornar um eremita.
- O NOME DISSO É MÚSICA: Benny Goodman, Mary Lou Williams, Fats Waller [música a partir de 55s]