Se não estivessem armados, o arroubo dos militares seria só um melindre

Integrantes das Forças Armadas não foram arrastados à política, buscaram-na como um soldado procura a guerra. Ocuparam repartições onde a corrupção grassa faz tempo. Flagrados em atitudes suspeitas, os fardados de fatiota querem agora ser tratados com condescendência

O presidente Jair Bolsonaro com o general Braga Netto, ministro da Defesa, e os novos comandantes militares - Foto: Marcos Corrêa/PR

A nota do alto comando militar das Forças Armadas atacando o presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (AM), foi exatamente o que pareceu, uma ameaça. E ameaça de milicos num país tristemente acostumado a intervenções militares representa a possibilidade de golpe de estado.

Se os militares acham que sua imagem pode se confundir com a corrupção intrínseca da política brasiliana, estão certos. Ao coabitarem intimamente o governo do presidente Jair Bolsonaro assumiram o risco.

Caso considerem estranha a linguagem crua corrente no meio político, devem se aconselhar com aquele a quem batem continência. Os vitupérios de Bolsonaro representam o auge da política tosca, mas não diferem sobremodo da baixaria e dos golpes baixos comuns dentro da vida partidária e eleitoral. Nos quartéis, insultos podem ser revidados com cadeia; na política, são feijão com arroz.

Senadores Randolfe Rodrigues, Omar Aziz, Renan Calheiros e Humberto Costa, integrantes da CPI da Covid do Senado – Foto: Orlando Brito

A fala de Aziz – que teve o cuidado de não generalizar, embora tenha sido contundente, no limite da bravata – descontentou a cúpula militar também porque é difícil rebatê-la. Se se propusessem a esmiuçar o teor da fala do senador, os milicos iriam se enredar inda mais, pois teriam que nominar os fardados de fatiota suspeitos de corrupção. Verdade, às vezes, dói mais que mentira.

Nos caminhos do Centrão

A boa imagem das Forças Armadas, de acordo com pesquisas, é devida, em parte, a distância que elas tomaram da política depois de retornarem à caserna, em 1985. Hoje, a política situacionista no Brasil é comandada por um consórcio entre militares e Centrão, o qual vai se revelando nefasto à medida que as investigações da CPI da Covid abrem os escaninhos bilionários do Ministério da Saúde.

Portanto, não foi a política que convocou os militares para o baile; foram os de farda que invadiram uma seara onde não há espaço para melindres. Políticos longevos, diz-se, têm couro grosso. Expõem-se, expõem suas vidas pessoais, sofrem devassas e chacotas. Faz parte.

Com a nota, as Forças Armadas tentam intimidar o Congresso Nacional. Quando um partido brada que não aceitará nenhum ataque apela à retórica. Quando as Forças Armadas dizem que “não aceitarão qualquer ataque” estão claramente valendo-se de seu poderio bélico como instrumento de duelo.

Nos primeiros momentos do governo instalado em 2019 eram explícitas as vantagens dos militares em compor o governo do capitão-mor. Melhores soldos e melhor aparelhamento logístico, ou seja, mais armas. Além disto, Exército, Marinha e Aeronáutica ganharam o condão de influenciar em todas as áreas, da infraestrutura à saúde.

Braga Netto, ministro da Defesa, e comandantes militares: almirante Almir Garnier, general Paulo Sérgio e brigadeiro Carlos Baptista – Foto: Orlando Brito

Como formigas, ocuparam quase todos os espaços na engrenagem de poder da Esplanada dos Ministérios e adjacências, num mutualismo estatal com civis. Atualmente, confundem-se com os paisanos. São fardados de fatiota. Assinar um cheque de R$ 1,6 bilhão, o qual vai enriquecer um desconhecido, e ser tentado a ficar com uma parcela é humano. Ostentar insígnias sobre os ombros não livra o indigitado da tentação.

Com a nota, traçaram uma risca no chão, como um guri brigão dizendo ao outro: “Se passar, vou dar porrada”. Emularam o chefão dos quartéis, o capitão-mor.

Lado a lado com os paisanos

Bolsonaro é portador de quase todos os adjetivos pejorativos listados nos léxicos. Mas, resumidamente, poderia ser definido como um ser desprezível, um pregador do ódio e um animador da discórdia. Caso os militares estejam interessados em preservar as instituições, como revelou o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior à jornalista Tânia Monteiro, deveriam se limitar a cuidar de seus afazeres nos bivaques, que são muitos e relevantes.

Ao se tornarem coparticipantes da razia que Bolsonaro está infligindo ao País, às instituições e à administração pública, os militares tornam-se alvos. Podiam ter se limitado a bater continência e cuidar de seu decisivo papel constitucional. Optaram por ocupar espaços de paisanos.

A ameaça implícita na nota torna-se mais deletéria quando os comandantes se omitem em outras questões cruciais, que vão além das suspeitas de que militares estão envolvidos em corrupção. Nota, aliás, que “amplificou a expressão ‘lado podre’ [das Forças Armadas]”, como observou a jornalista Eliane Cantanhêde.

“Grave”, “vil”, “leviano” e “irresponsável” é precipitar a morte de milhares de brasilianos por crendices obscurantistas que atrasaram a compra de vacinas contra a covid-19, é devastar a Amazônia e o Pantanal, é atacar diuturnamente os demais poderes, é fragilizar a democracia com ameaças autoritárias, é desprestigiar a educação, é ocupar os órgãos de fiscalização e controle para barrar investigações, é estimular a cizânia e o conflito como modus operandi na política e na relação entre patrícios. E, no que toca diretamente às Forças Armadas, é o incentivo ao armamentismo, à insurreição das PMs e à tonificação das milícias.

Quem não quer se queimar, não mexe com fogo. Os militares sabem bem disto.

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