Vivemos num país livre e democrático há 32 anos contínuos. No princípio deste interregno, recorde para nossos pobres padrões, o mundo ainda se dividia entre EUA e URSS. Direita e esquerda.
De lá para cá, estes conceitos se diluíram com a ruína do lado do mundo que sustentava a sinistra. Mudanças comportamentais matizaram também o lado ocidental do globo.
Você pode ser negro, homossexual e assumidamente de direita. Ou branco, da elite e de esquerda. Às vezes por convicção, outras por conveniência.
Parte das balizas que caracterizavam um e outro foram mitigadas pelo fim da facilidade com que antes todos se posicionavam. Era quase compulsório ficar a favor ou contra alvos postos e determinados.
Eis que uma das referências, a URSS, transmutou-se em uma ditadura disfarçada de oligarquia. Restaram caricaturas de comunismo, como Cuba e Coreia do Norte.
A mudança tectônica causou abalos em cadeia, abalando referências. Entre elas, o tamanho do Estado está entre as mais questionadas.
Doria, por enquanto, é um experimento
Para a esquerda extremada, ele precisa ser gigamenso, pois as pessoas precisam da tutela estatal. Para a direita recalcitrante, o Estado só atrapalha e quem for competente que se estabeleça.
Toda esta falta de referências, traço deste início de século, é permeada pela descrença na política como mediadora de conflitos, aqui e além-mar. Em nossas terras, os últimos 13 anos de governo conduziram ao aniquilamento da política.
No cenário onde direita e esquerda dizem menos do que antes e políticos não são bem-vindos, mas o Estado continua a exigir quem lhe conduza, surgem figuras experimentais. Parece ser o caso de João Doria, prefeito de São Paulo.
Gerado pelo contumaz candidato a presidente da República, governador Geraldo Alckmin, o empresário ricaço e midiático faz questão de se dizer gestor, rejeitando a política. Falso. Ninguém sem tal habilidade chegaria onde ele chegou.
Com a carência de profissionais da política que não constem em alguma lista de meliantes do erário, o nome de Doria, ora edil paulistano, desponta como alternativa a postos mais reluzentes. Roupagem que parece lhe apetecer.
O tamanho do Estado de Doria ainda não está claro. Ele não se assusta, porém, em romper paradigmas patrícios, trazendo a iniciativa privada para dentro do Edifício Matarazzo, descabelando quem, em teoria, demoniza o empresariado.
Alckmin pode ter criado um monstro transmudante, que não tem cara nem referências que não sejam o poder. Ou pode ter parido um bruxo capaz de amalgamar o descontentamento com os políticos profissionais e seu mantra “gestão é o que interessa”.
O ambiente em mutação pelo qual passa o Brasil (e o mundo) não comporta previsões, mas vaticínios. Além disso, a Lava-Jato está em curso, assanhando outros juízes a investirem sobre larápios ainda nas sombras do Estado, como constatou a divergente Helena Chagas.
De concreto, a presidência da República no caminho do prefeito. Quanto mais a Lava-Jato varre do cenário os nomes recorrentes a chefiar o Palácio do Planalto, menos obstáculos advém à sua frente.
As barreiras que restam, porém, demandarão afinco. É o caso PSDB, incluindo o mentor Alckmin, que precisaria indicá-lo candidato, e os eleitores, que teriam que sufragá-lo. Para esta empreitada, o gestor vai precisar fazer mais política do que nunca.