Nunca tanta informação esteve disponível para uma percentagem tão expressiva de viventes. Ainda assim, este começo de século XXI pode ser caracterizado como a era das irracionalidades, sobretudo na política.
No momento, o debate gira em torno da legitimidade de Jair Bolsonaro vis-à-vis à do Congresso Nacional. Enquanto o presidente buscaria atender os anseios da população, o Legislativo estaria na contramão, obstruindo a vontade popular.
Interlúdio político
Primeiro, é preciso entender que vivemos os redemoinhos do final de uma era. Após 24 anos escolhendo políticos da chamada esquerda, o eleitorado deu uma guinada de 180 graus.
Estamos, assim, num interlúdio político. Deixamos um período histórico, mas ainda não adentramos o outro. São as dores do parto.
Assim como as eleições de Fernando Henrique (PSDB), Lula (PT) e Dilma (PT), a escolha de Bolsonaro (PSL) foi igualmente legítima. Afinal, o Brasil, desde que José Sarney (PMDB) deixou a Presidência da República, tem eleições livres, universais e secretas.
Aglomerados políticos
Segundo, a configuração política do eleitorado mudou. O Brasil de 2019 tem dois aglomerados radicais e antagônicos. Um sob a liderança de Lula, outro sob a de Bolsonaro.
Nenhum destes aglomerados é homogêneo. O que une cada um é a liderança quase mítica exercida por seus líderes, encarados como demiurgos.
Quem os segue minimiza as falhas de seu líder e maximiza os defeitos do adversário. São estes os que fazem mais barulho, amplificando suas vozes talvez mais do que realmente representem.
A última contagem aferida de seguidores foi a da eleição de outubro de 2018. Bolsonaro com 57,7 milhões, Lula (via Fernando Haddad) com 47 milhões. Compõem estes imensos aglomerados não apenas bolsonaristas e lulistas, mas antilulistas e antibolsonaristas.
Número igualmente expressivo (nulos, brancos e abstenções), 42,3 milhões não sufragaram nem um, nem outro. Somaram 30,87% dos eleitores.
O contingente de apoiadores de Bolsonaro hoje diminuiu, o que é facilmente constatado pelas pesquisas de opinião. Ficaram os seguidores mais aguerridos e intransigentes.
Do lado de Lula, a melhor expressão numérica são as bancadas de partidos à esquerda. Assim como o aglomerado de bolsonaristas, não há mensuração precisa.
Enquanto a academia não se debruça numa avaliação científica das tendências e agrupamentos políticos da atualidade, é possível arriscar uma avaliação empírica. O Brasil tem hoje dois aglomerados heterogêneos e fiéis – um liderado por Lula, outro por Bolsonaro.
Considerando pesquisas e eleições, cada um desses aglomerados reúne entre 20% e 30% de apoiadores. Tudo depende da definição de bolsonarista e lulista – como o grau de fidelidade e de intransigência.
No meio dos dois extremos, a maioria dos brasileiros. Podem ter simpatias pelos demiurgos, mas não estão dispostos a se expor em demasia por nenhum.
Maniqueísmo
O debate atual torna-se irracional quando bolsonaristas estribam a legitimidade do presidente no resultado das urnas de 2018, mas contestam a legitimidade angariada por deputados federais e senadores.
Quer dizer, os sufrágios em Bolsonaro foram legítimos. Mas os votos nos parlamentares, não.
A esquizofrênica argumentação despreza, por exemplo, que a soma dos votos em deputados federais e senadores (mais de 95 milhões apenas para a Câmara) é muito maior do que à conferida à Bolsonaro. Tirante os suplentes de senadores, que não têm votos, todos os demais envergam a legitimidade dos eleitores.
“Na verdade, o Parlamento é a cara do Brasil.
Com suas contradições, antagonismos, radicalismos,
vícios, interesses, defeitos e virtudes”.
Por trás deste viés ideológico, há dois aspectos preponderantes. Um deles aproxima bolsonaristas a lulistas.
Assim como a militância do PT, a do PSL adota o maniqueísmo, velha chaga da política. Para a turma que se aglomera em volta dele, Bolsonaro quer o bem do País. Portanto, todos os que se opõem a ele querem o mal.
A cara do Brasil
O outro aspecto é mais enraizado na formação política brasiliana. Há uma crença ampla de que o Congresso Nacional é formado pelo que há de pior no País.
A fundamentação desta crença popular, mas com respaldo na mídia e na academia, foi estigmatizada na frase “o Congresso não me representa”. O voto é livre, secreto e universal, mas não representa a vontade popular. Esquizofrenia política.
Na verdade, o Parlamento é a cara do Brasil. Com suas contradições, antagonismos, radicalismos, vícios, interesses, defeitos e virtudes.
Não há uma reforma, mas várias
Ora, se num Executivo extremamente centralizado como o brasileiro os consensos são difíceis, o que dizer do Congresso Nacional, onde se conflagram 594 diferentes pensamentos. Não há, nem haverá consenso.
Observe duas rodas de debates sobre a reforma da previdência. Uma com gente comum, que conhece o tema da leitura de matutinos e hebdomadários.
E outra de economistas. Em nenhuma encontrar-se-á uma única reforma, tampouco o mesmo entusiasmo em aprová-la.
Nas duas rodas, não será improvável que todos sejam favoráveis à reforma. Caso da elite do funcionalismo público, cujas corporações a defendem – desde que não se mexa com os privilégios delas.
“A questão não é quem é a favor da reforma,
mas qual reforma se quer”.
A questão não é quem é a favor da reforma, mas qual reforma se quer. A cidadania tem múltiplas visões sobre a Nova Previdência. O Congresso Nacional, extremamente permeável à vontade popular, apenas reflete esta multiplicidade de visões.
Simplesmente por que o tema é pulsante, complexo e interfere diretamente na vida das pessoas. A reforma da previdência não é um benefício em si mesma, pois vai suprimir direitos e privilégios, mas uma expectativa difusa de um futuro melhor.
O Parlamento é a legítima expressão do povo brasileiro. Negar isto é negar nossa essência e nossas contradições. E apostar na irracionalidade, péssima conselheira.