A Terra é redonda e tem dois polos. Esta realidade deve ser a mesma pelos próximos 5 bilhões de anos, quando a atmosfera do sol se expandir e aniquilar nosso planeta. Um meteoro errante talvez antecipe o destino fatídico do globo terrestre.
Já a política sofre transformações em período de tempo menor e tem mais do que dois lados. O dualismo, conceito majoritariamente adotado, findou-se com a desconstrução do Muro de Berlim (1989) há mais de três décadas. Entretanto, por conveniência dos agentes políticos aliada à comodidade da imprensa, prossegue sendo encarada no modo binário: esquerda x direita. A simplificação maniqueísta, amiúde, facilita o discurso e o posicionamento políticos.
A academia, que pode estudar o (1) ocaso desta dicotomia – soterrada pelo fim da Guerra Fria (1991) – e o (2) sistema multipolarizado e intricado que resultou do esfacelamento do antigo modelo, parece perseverar na visão binária. Cientistas políticos e sociólogos igualmente adotam a dualidade direita x esquerda como paradigma.
Nascido na Revolução Francesa (1789), intumescido pela Revolução Russa (1917) e maximizado no pós-guerra (1947), este sistema político dividiu o mundo entre os pró-URSS e os pró-EUA. O que estava em jogo era qual potência sobrepujaria a rival e dominaria o planeta. O embate era real. Mas esta realidade estiolou-se. O mundo e, em consequência, a política, tornou-se multipolar.
É como se a Torre Eiffel implodisse e a principal referência aos passantes em Paris desaparecesse. Sem outra torre no horizonte, tampouco aparente disposição da academia e da mídia tradicional para desvendar o novo modelo, prosseguimos avistando a miragem do que um dia foi um referencial.
Que país é este?
Formulações teóricas, de uma ponta (os desenvolvedores) até o usuário final (o cidadão), sofrem derretimento de conteúdo. No frigir dos ovos, quando as elucubrações se dissolvem, restam generalizações. “A esquerda tem mais preocupação com o social”. “A direita preserva os direitos individuais”. “Esquerdistas propugnam a igualdade”. “Direitistas defendem o livre mercado”. São imagens imprecisas, às vezes enganosas, que embaralham o debate político.
À medida que lê ou ouve, o cérebro dispara um juízo positivo ou negativo, conforme nossas concepções enraizadas – que, muitas vezes, nunca foram questionadas, apenas herdadas ou assimiladas. Quando a dúvida inexiste, o juízo fenece. Não penso, mas continuo existindo.
Em que país as liberdades individuais são mais respeitadas? Venezuela ou Hungria? Que país valoriza mais o mercado? China ou EUA? Onde o bem-estar social é maior? Japão ou Nicarágua? Quem mais respeita a liberdade de expressão? Rússia ou Inglaterra? Quem defende mais as chamadas minorias? Holanda ou Cuba? Onde há mais igualdade? Alemanha ou Bolívia?
Todo estado é intrometido
Ao assumir o domínio dum Estado, os agentes políticos precisam calibrar, a depender das leis e do Parlamento, a amplitude de princípios fundamentais da nação que irão administrar. Entre estes, as liberdades e o tamanho do Estado, que indicarão o quanto o governante vai se intrometer na vida dos cidadãos. Todo Estado restringe a liberdade e interfere na vida dos cidadãos. “O homem nasce livre e em toda a parte está a ferros (ou ‘está acorrentado’)”, escreveu Jean-Jacques Rousseau, em Do Contrato Social (1762). No entanto, o tamanho desta intervenção não é determinado pelo local onde se assentam os parlamentares na Assembleia Nacional, à esquerda ou à direita.
A inclinação autoritária ou o espírito bélico, por exemplo, independem do viés ideológico. Posicionar-se à direita ou à esquerda tem pouco a ver com princípios fundamentais como liberdade ou compromisso com a democracia.
Os conceitos perderam significado e tornaram-se anacrônicos, deles resultando um matiz complexo de concepções. Para a sociedade, os antigos rótulos representam fonte de ilusões. Adotados como parâmetros, estimulam a formação de grupos políticos estanques, com permeabilidade e mobilidade limitadas. O crachá com que cada qual se apresenta o distingue e expõe supostas virtudes. “Sou de esquerda, defendo o povo”. “Sou de direita, prezo pela liberdade”. Esquerdista e direitista se tornam adjetivos com poderes depurativos ou infectantes, a depender de pontos de vista do interlocutor.
Um esquerdista pode ser um conservador nos costumes. Um direitista, defender as chamadas minorias. Esquerda e direita fragilizam a liberdade de expressão. Direita e esquerda foram flagrados roubando dinheiro público. Nenhum tem o monopólio do bem-estar social. Ambos adotam critérios flexíveis, a depender se a polêmica envolve um aliado ou adversário – os malfeitos dos adversários, mesmo que idênticos, são sempre mais graves do que os praticados por aliados.
Tolerância virou démodé
Em artigo recente, a jornalista Vilma Gryzinski fez algumas provocações. As “grandes farmacêuticas”, “de vilãs do universo esquerdista” “se transformaram em avatares da Ciência”. “A Big Pharma” “virou a inimiga atual da direita pura e dura”. Outro exemplo citado pela periodista refere-se à “pressão brutal de Vladimir Putin sobre a Ucrânia”. “A direita populista” “parece ter se tornado porta-voz do Kremlin”. “O que faz a esquerda que sempre se encantou com o antiamericanismo de Putin?”
Este modelo binário traz consequências destrutivas. A simplificação congestiona o difícil debate (ou enfrentamento) de atores políticos e da cidadania politizada. Quem é de esquerda despreza direitistas. Quem é de direita não respeita esquerdistas. Sem tolerância, não há convivência respeitosa entre diferentes, mas o aniquilamento do pensamento ábsono. “Aqueles com quem temos divergências políticas não estão apenas errados; geralmente são vistos como nocivos e irredimíveis”, resumiu Peter Wehner, do The New York Times, um republicano crítico do ex-presidente Donald Trump.
O jornalista argentino Alejo Schapire, que se autodefine como “huérfano de la izquierda”, aponta mudanças comportamentais na chamada esquerda que se associou “à intolerância, ao totalitarismo terceiro-mundista, ao obscurantismo, ao antissemitismo e às formas mais rematadas de machismo e homofobia, desde que se digam ‘anti-imperialistas’. Eles colocaram o ódio aos Estados Unidos e Israel acima de qualquer outra consideração”.
Mesmo sendo um fator de instabilidade global, ameaça à democracia, descaso com o meio ambiente e tolerância com o racismo, Donald Trump é idolatrado pela chamada direita. Vê nele, além da possibilidade concreta do poder máximo e da dominação ideológica, um esbirro poderoso contra a chamada esquerda.
Imoderadamente moderado
Esta irracionalidade política, plantada em bases pouco distintas entre si nos métodos e em muitas concepções, incita o belicismo ideológico, desalojando a disputa democrática. O prejuízo aos viventes sob o comando de um e outro espectro tende a ser equivalente – afora os totalitarismos exacerbados. Mesmo que em meio aos extremos haja uma maioria de moderados dispostos a ouvir e dialogar, a prevalência é pelo aniquilamento da convivência civilizada. Extremistas são altissonantes.
Entre as consequências deste dualismo está o estímulo aos extremismos. Políticos e cidadãos politizados são humanos; têm o dom da razão, mas agem o mais das vezes movidos pelas paixões. (“Cada um deve, meditando sobre a lei, corrigir a irregularidade das paixões” (1651), teorizou Thomas Hobbes, no Leviatã. Enigmático, Francisco de Goya, na gravura “El Sueño de la Razón produce Monstruos” (1799), alertou que a razão também pode ser violenta.) Se o mundo se resume à esquerda e à direita, serão estes os posicionamentos dos cidadãos. Não interessa que o conceito seja anacrônico e ilusório; adotado, prevalecerá como baliza, pois nos convencemos do que repetimos, e repetimos para nos convencer. Resta que a moderação, o equilíbrio e a tolerância viram conceitos de manual.
Em plena Guerra Fria, o filósofo francês Raymond Aron já desprezava os rótulos castradores do bom senso e da razão. “Recuso essas categorias”. Aron, “imoderadamente moderado”, anunciou no prefácio de sua obra O Ópio dos Intelectuais (1955), que estava “inclinado a romper todos os laços, não para me comprazer na solidão, mas para escolher meus companheiros entre aqueles que sabem combater sem odiar”. Moderação idealista, mas irreal. Nesta era dos extremos, a qual vivenciamos, não parece haver espaço para utopias fraternas.