Na esteira do escândalo do Mensalão, em 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva perdeu apoio popular e foi ameaçado por um processo de impeachment. Hábil negociador político e favorecido por circunstâncias econômicas, um dos maiores líderes populares da história do Brasil sobreviveu.
Mais do que isto. Conquistou a reeleição, em 2006, e elegeu duas vezes a sucessora que indicou. O PT só foi apeado do poder em consequência do impedimento da presidente Dilma Rousseff, em 2015. Embora seja uma possibilidade, não dá pra saber se Lula venceria o então deputado Jair Bolsonaro em 2018, caso tivesse tido permissão para concorrer ao quinto mandato sucessivo do PT à Presidência da República.
Estes episódios recentes da história do Brasil podem ser analisados de maneiras diferentes, mas é indiscutível a resiliência de Lula. Lembremos que, antes de se tornar presidente da República, ele perdeu três eleições presidenciais e sofreu ataques políticos e pessoais como poucos – ressalvando que a imprensa tradicional não poupou nenhum mandatário no pós-ditadura.
Encurralado
E Jair Bolsonaro com isto? Com a popularidade em queda, o atual presidente sofreu forte desgaste político logo no segundo ano de seu mandato. As circunstâncias do enfraquecimento e o quadro econômico são diferentes daqueles enfrentados por Lula. Ressalvando as limitações comparativas, o que parece ser semelhante, até aqui, é a resiliência de Bolsonaro.
Afundado em descrédito crescente (que ele mesmo provocou) e atracado num embate institucional contra os outros dois poderes (Parlamento e Corte Suprema), ao avistar o impeachment Bolsonaro não logrou apoio para uma alternativa de exceção, conforme revelou a jornalista Monica Gugliano. Embora o impedimento nunca tenha se configurado como real, a possibilidade existiu – tanto via Congresso Nacional como pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Hoje, está em standby.
Num país onde o impeachment parece ter se tornado corriqueiro, diante de seguidos reveses Bolsonaro mudou de tática. Talvez alertado pelos generais de que uma ruptura institucional não teria o apoio dos quartéis. Talvez aconselhado pelo tarimbado ex-presidente Michel Temer, ele mesmo sobrevivente a duas tentativas de deposição via Parlamento.
Vale relembrar meus 17 leitores de artigo recente aqui n’Os Divergentes (Quando o “gosto pelo poder” contagiar as Forças Armadas). Nele, ficou registrado: “Pelo que acertaram e pelo que erraram, o grupo [de 6 ex-presidentes vivos] deveria ser ouvido com mais frequência”. Somados, o sexteto tem 30 anos de experiência administrativa e política, tendo se relacionado com todo o establishment nativo.
Ficha corrida
Motivos para temer juízes e parlamentares contrariados, Bolsonaro tem. Se desvendado a fundo, seu envolvimento com milicianos dificilmente vai revelar coisa boa. O patrimônio imobiliário familiar vultoso e pago em espécie é muito suspeito. A denúncia de apropriação criminosa de vencimentos de servidores públicos não é difícil de provar, se houver empenho do Ministério Público e os supremos sufetas deixarem. O envolvimento com pregadores do golpe militar, incentivadores do ódio e propagadores de notícias falsas também está sendo investigado, em mais de uma frente.
Foi diante da (circunstancial) impossibilidade da via de força e com investigadores experientes nos seus calcanhares que o hodierno presidente resolveu mudar seu modus operandi. Alinhou-se ao Centrão partidário (como fez Lula), conteve sua retórica boquirrota (Lula adotou o “paz e amor” antes de assumir a Presidência) e decidiu gastar mais no social (Lula sempre priorizou este tipo de investimento).
Pelo menos no quesito bons modos, o mandatário deu meia-volta. No último domingo, Bolsonaro ameaçou dar “porrada” num repórter d’O Globo que lhe fez pergunta óbvia sobre depósitos recebidos pela mulher, Michelle Bolsonaro. Expôs um ponto fraco, pois qualquer brasileiro honesto sabe explicar R$ 89 mil na conta bancária.
O prejuízo político do destempero emocional, no entanto, deve ser visto com frieza. Afinal, foi este Bolsonaro truculento e tosco que conquistou 57,7 milhões de votos em 2018 (39,23% do eleitorado). Mudar radicalmente seu estilo pode desgostar seu eleitorado sem representar novos apoios. Os protestos mais ruidosos contra o presidente costumam vir dos mesmos lugares de sempre: artistas, academia e jornalistas.
Bolsonaro x Bolsonaro
Muito, muito cedo para prever o sucesso de Bolsonaro rumo à reeleição. O Brasil vive uma polarização raivosa e a economia está bastante deteriorada – em parte, por conta do coronavírus. Enquanto isto, ele persiste desprezando a tragédia da covid-19, dando corda à destruição da Amazônia e perpetrando uma diplomacia de colisão. O capitão-mor ainda terá que ralar muito para exibir o tirocínio político de Lula – noves fora o Mensalão e a Lava-Jato.
Mas há sinais de que Bolsonaro está se rendendo às artimanhas da política tradicional. Semana passada anunciou a continuidade do auxílio-emergencial. Fê-lo no Rio Grande do Norte, em meio ao crescimento de sua popularidade em todo o País. O Nordeste, reduto petista, antes escanteado, tem sido alvo da agenda presidencial.
Ao mesmo tempo, anuncia que vai reformar o Bolsa Família, adicionado milhões de pessoas e aumentando o valor dos benefícios – sem “tirar [dinheiro] de pobres”, prometeu, na quarta, 26, em Minas Gerais. Por fim, a oposição dispersa e o companheiro-mor, por enquanto, fora das eleições favorecem-no inda mais.
Para conseguir seu intento, Bolsonaro precisará manter a inflação baixa, criar empregos e fazer o Brasil voltar a crescer. Neste flanco, seu desafio imediato é contornar os embates entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor do Estado mínimo, e os generais desenvolvimentistas, que entregaram o Brasil arruinado economicamente ao final de 21 anos de ditadura militar. A escolha entre um lado e outro parece iminente.
Esta é a fotografia do Brasil no momento. A popularidade presidencial ora em ascensão, conforme indicam as pesquisas, mais do que revelar um Bolsonaro em aparente metamorfose no modo de fazer política, mostra que o presidente não está sozinho.
Longe de representar um pensamento isolado, o presidente reflete o que parte do Brasil acredita. Ao contrário da crença idílica, nossos políticos não são melhores do que nossa sociedade.