Durante boa parte dos tempos pós-ditadura ninguém era de direita no Brasil. Alguém era esquerda, podia ser de centro-esquerda, outros de centro e, vá lá, furtivamente de centro-direita.
Talvez pela sinonímia que o termo adquiriu. Ser de direita era ter apoiado a ditadura, cuja lembrança despertava os pavores dos anos de chumbo.
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A narrativa, então ditada pela imprensa, pela academia e pelos artistas, carimbou o termo como anátema. No máximo, alguém admitia ser conservador, antiesquerda, mas não de direita.
De repente, irrompe um desprezado capitão-mor dum anonimato folclórico de 28 anos no Congresso Nacional. Jair Bolsonaro, o deputado federal que nunca negou o que era, arrebanhou o contingente que sempre existira, mas não tinha um fio condutor nem uma tomada para ligá-lo.
Juntou, em incontáveis likes num post do Twitter, os brasileiros conservadores, simpáticos à chamada direita, que preferem a tradição às novidades e defendem outro modelo econômico. E, claro, rejeitam os chamados esquerdistas.
Assim como na chamada esquerda não há pensamento único, mas tendências, a chamada direita reúne grupamentos distintos.
Liberais, libertários e libertinos
Um pode ser liberal na economia, mas conservador nos costumes. Outro, conservador nos costumes e intervencionista na economia. Num terceiro grupo, libertários indiferentes à libertinagem alheia.
Aglutinaram-se em torno de um projeto comum que reunia ojeriza à esquerda (hegemônica no pós-ditadura), repúdio à corrupção (escancarada pelo Mensalão e pela Lava-Jato) e sede de poder. À mão para a conquista da Presidência da República estava o deputado Bolsonaro.
Esperto, apoderou-se das redes sociais para aglutinar um imenso e heterogêneo contingente eleitoral – 57,7 milhões de brasilianos. Fê-lo com oportunismo e autenticidade de propósitos – embora tenha escamoteado suas relações com a milícia carioca, as velhas práticas políticas e o mercado imobiliário.
Claro que a chamada direita não surgiu com Bolsonaro. A façanha do capitão-mor foi tirar do armário milhões de brasileiros que reprovam casamentos gays, que querem usar um coldre na cintura, que não ligam para a preservação do meio ambiente, que debocham da razão, que preferem o estado mínimo e que têm medo de espécies em extinção, como os comunistas.
Hoje, graças ao capitão-mor, sabemos que o Brasil é extremamente heterogêneo. E este é o lado positivo dessa guinada patrocinada pelos eleitores. Estão todos expostos em praça pública, ao alcance de um mandado de prisão.
Tirante autoritários de diversos matizes, à sinistra e à destra, democracias devem abrigar todos os pensamentos. Por contraditória ironia, até os extremistas, que querem destruí-la.
Esperteza não rima com gentileza
As regras básicas para uma existência civilizada são: respeito ao estado democrático de direito, liberdade e igualdade de oportunidades. O pluralismo político precisa ser universal e os poderes da República, independentes. Os direitos humanos têm que valer para todos. A imprensa deve ser livre.
O exercício da democracia torna o progresso mais lento e mais custoso. Sem ela, a China tornou-se a segunda maior economia global. A antiga URSS, uma potência bélica.
Há, no entanto, bons exemplos na Europa e na América do Norte de nações que uniram prosperidade com democracia. Nestas, há espaço para as opiniões divergentes.
Por aqui, vivenciamos tempos de incerteza, enquanto alimentamos ilusões. Uma quimera recorrente, brotada nas academias e gestada nos meios de comunicação, traça um brasileiro médio gentil, altruísta, generoso e honesto. Não existe esta figura.
Bolsonaro, um sujeito tosco, sem empatia e reduzido intelecto, mas popular, ajudou a desfazer essa visão idílica. Sua força vem de muitos que com ele compartilham o mundo de ódio e obscurantismo.
Nada de novo para quem observa com atenção a cena brasiliana e o cotidiano de seus habitantes. O brasileiro médio, um exercício de abstração, não é melhor do que os que o representa, quais sejam, os parlamentares.
Imprensa e academia, há tempos, e, mais recentemente, os procuradores da Lava-Jato, propagam a visão de que o problema tupiniquim é o Legislativo. O Brasil e os brasilianos são um povo bom e honesto, mas os parlamentos deformam esse caráter patrício.
Nada mais falso. O Congresso Nacional – constituído pelo voto secreto, livre e universal – é a expressão autêntica do povaréu. A caixa de ressonância dos eleitores. Meus 17 leitores já ouviram isto antes.
Culpar Bolsonaro por todos os nossos males é outra expressão da lógica do paternalismo, segundo a qual a culpa é sempre do Estado, nunca da cidadania. No Brasil, à destra e à sinistra, vence o mais esperto, o que chegar primeiro. Furar a fila é esporte nacional, símbolo da malandragem festejada. “Furei a fila e passei na frente de todo o mundo”, gaba-se o brasileiro médio. “Parabéns”, aplaudem, com inveja do finório.
O que dizer dos milhões de espertalhões que burlaram o auxílio-emergencial destinado às vítimas do coronavírus? Ou do funcionalismo fura-teto que se lixa para a fome e a miséria alheias?
Fugir destas amargas constatações é não encarar o espelho túrbido por nossos atávicos e enviesados costumes. Como cantou Caetano Veloso em Vamo Comer: “Baiano burro nasce, cresce / E nunca pára no sinal / E quem pára e espera o verde / É que é chamado de boçal”.
Vai-se o mito, ficam os súditos
Prega-se a reforma política como a mãe de todas as reformas. Embutida nesta outra quimera está a ilusão de que, reformado, o sistema representativo dará vazão às boas intenções da sociedade. Como se o desejo médio dos brasilianos fosse edificante e altruísta. Ou como se o eleitorado já não estivesse espelhado nos legislativos.
Em artigo recente, Ricardo Kotscho, citando Ivann Lago, lamentou nossa sina. “No ‘mundo real’, o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto“.
A imprensa e a academia se retroalimentam, repetindo que Bolsonaro é a expressão atípica do mal. Na verdade, ele é a expressão do bem e do mal que há numa larga fatia dos brasilianos.
A direita escancarada, parafraseando Elio Gaspari, talvez seja o mais importante e positivo legado de Jair Bolsonaro. As urnas, o Parlamento ou o ativismo judiciário podem depor o capitão-mor. O contingente de brasilianos que o entronizou como mito, não.