O jeitinho carioca e a lógica do paternalismo

Segundo a lógica do paternalismo, as pessoas não são responsáveis pelas mazelas do Estado onde vivem. O Estado é meu provedor, e nada me faltará

Tragédia de Muzema, no Rio. Foto Tânia Rego, Agência Brasil

Diante da sequência de desmazelos no Rio de Janeiro, o jornal O Globo de sábado, 13 de abril, quis saber de 15 conhecidos cariocas “Como o Rio chegou aqui? E, sim, qual a nossa parcela de culpa?”.

Parte das respostas enveredaram pelo caminho comum de culpar políticos e autoridades públicas. Mas chama a atenção que a vitimização recorrente nas análises deixa de ser unanimidade.

Trata-se de uma inflexão, já que, normalmente, repórteres são treinados para culparem exclusivamente o poder público. Talvez pela guinada política a que o Brasil foi submetido nas eleições de 2018, democraticamente orientada pelo eleitor, fique mais difícil responsabilizar os culpados de sempre.

Moradores da favela da Muzema, a mais recente tragédia, reconhecem que não são apenas vítimas. “A gente vem para cá sabendo que não é nada legal. Tudo é milícia”, disse um deles ao Jornal Nacional, da TV Globo.

“Inócuo, senão cínico, cobrar das autoridades
que deixem de ser malandras públicas, enquanto cultuamos a malandragem privada”
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Rio. Foto Fernando Frazão, Agência Brasil

A confissão revela um sistema oposto ao maniqueísmo predominante. Nesse modelo aparentemente contraditório, o cidadão é causa e efeito, agressor e vítima.

Tragédias brasilianas, as cariocas incluídas, são em boa dose responsabilidade da incompetência e descaso das autoridades – não raro da corrupção. Mas, do outro lado do espelho, estamos os brasileiros – nosso jeitinho, nossos vícios, nossos pequenos e grandes delitos.

Lei do mais esperto

Parte das respostas dos cariocas ouvidos pel’O Globo fluem na direção oposta à lógica do paternalismo, segundo a qual as pessoas não são responsáveis pelas mazelas do Estado onde vivem.

“Essa crise passa muito por aceitar os padrões baixos, em que tudo é aceito. Está sempre tudo bem, a gente depois dá um jeitinho”, diz um deles. “Nós fazemos parte desta rede de omissões”, escreve uma carioca.

Um outro analista chama a atenção para a incapacidade de distinguirmos o que é nossa casa e o que é a rua. “Aqui, a casa está na rua”. Daí, surgem os gatos da rede elétrica, da TV por assinatura, do abastecimento de água potável.

Vence o mais esperto, o que chegar primeiro. Eis um retrato do brasileiro que, em boa medida, se reflete no poder público.

Não basta, assim, apenas culpar os políticos – lenitivo recorrente para remissão de nossos pecados. “Há também algo que diz respeito ao carioca”, pontua uma das analistas. Diz respeito aos brasileiros, completo.

A mesma autora se volta para seus conterrâneos. “Para onde você olha, você vê deterioração. As pessoas jogam lixo na rua, o ônibus avança o sinal, não se dá mais assento à grávida no metrô”. Ciclistas andam em local de pedestres, pedestres invadem ciclovias, compramos produtos baratos sabendo que são frutos de roubo.

“Quando responsabilizamos o Estado por tudo o que acontece, assumimos, intrinsecamente, que queremos ser tutelados, dependentes. O Estado é meu provedor, e nada me faltará”.

Talvez nada desnude melhor esse traço de nossa personalidade quanto o esporte nacional de furar filas. Quem, numa roda de conversa, não viu alguém se gabar por furar a fila na compra de ingressos, a fila da matrícula, a fila da vacina, a fila no trânsito?

Levar vantagem é, mais das vezes, encarado como ato de esperteza. Fraudar o INSS, o Bolsa-Família, o Seguro-Desemprego, a Receita Federal, o Minha Casa Minha Vida é motivo de orgulho, não de pejo.

Farinha pouca,…

De modo geral, é o que faz parte de nossas autoridades. As cifras que elas manipulam são superiores por que seu poder é maior que o do cidadão comum.

A autoridade tem acesso ao ministro, ao juiz, ao rico empresário. Os cidadãos espertos têm acesso ao policial da esquina, ao chefe do posto de saúde, ao miliciano do bairro. Cada um leva vantagem na sua esfera de influência, na proporção de seu poder e no tamanho do saldo bancário.

Tragédia de Muzema. Foto Tânia Rêgo, Agência Brasil

De acordo com a lógica do paternalismo, o Estado é sempre o único culpado e o cidadão nunca é responsável. É o jeito mais fácil de purgarmos nossas culpas e nos eximirmos da solução.

Jogamos lixo na rua, que entope bueiros, que amplia os danos da chuvarada. Mas a culpa é do poder público que não adota a varrição eterna.

…meu pirão primeiro

Vivemos numa nação de vivaldinos, onde a solidariedade cede espaço ao individualismo. Nossos governantes não são melhores ou piores que nossa gente.

Fugir da amarga constatação é não encarar o espelho encardido por nossos atávicos e enviesados costumes.

Encarar esta realidade, porém, não é o desfecho inevitável, mas o início para nos redimirmos e construirmos uma nação menos egoísta.

A dor das famílias e os trabalhos de resgate. Foto Tânia Rêgo, Agência Brasil

Algumas dicas saltam dos artigos do matutino carioca. “O único fator de esperança está na sociedade, no seu potencial solidário”, aponta um articulista, para quem é preciso depender menos do Estado.

Quando responsabilizamos o Estado por tudo o que acontece, assumimos, intrinsecamente, que queremos ser tutelados, dependentes. O Estado é meu provedor, e nada me faltará.

Já sabemos da (imensa) parcela de culpa que cabe às autoridades. Resta-nos encarar nossa responsabilidade. Inócuo, senão cínico, cobrar delas que deixem de ser malandras públicas, enquanto cultuamos a malandragem privada.

Adotar a honestidade como valor absoluto é um passo virtuoso. Fugir do individualismo estampado no malfadado provérbio “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro” melhoraria bastante à convivência cidadã.

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