Fiz um bate-volta ontem ao Rio para me despedir do Moreno. Na saída do São João Batista, o taxista olhou para mim, para o Bernardo e para o Guilherme Barros e foi logo lamentando: perdemos o Moreno, né… Pois é, perdemos. Nós, seus amigos, e uma inimaginável legião de fãs, admiradores e amigos não-revelados que ele foi carreando ao longo da vida, uma coleção de jornalistas, taxistas, presidentes da República, cozinheiros, artistas, afilhados, amigos de afilhados, porteiros, deputados, vendedores, garçons, senadores, pizzaiolos. Todos cativados pelo jeito acolhedor, a fala simples, a risada matreira.
Fui capturada pelo Moreno quando tinha 18 anos e pisei pela primeira vez como estagiária no Congresso, pelo Jornal de Brasília, onde ele já despontava como estrela máxima da editoria de política. Como fez com amigas pela vida afora, provocando sempre ciúmes a cada troca, ele me adotou. Andava comigo para lá e para cá, me apresentava as fontes, botava meu nome, generosamente, nas matérias que ele fazia sozinho. Foi ele que me ensinou que o PT, recém-criado – olha há quanto tempo foi isso – era Partido dos Trabalhadores – e não “Partido Trabalhista”, como a burrinha aqui escrevera certa vez na matéria.
Desde então, o Moreno nunca saiu da minha vida, nas melhores e nas piores horas. Não que o relacionamento tenha sido tranquilo e pacífico sempre. Foram muitas brigas, implicâncias, brincadeiras de bom e mau gosto. Ele era o campeão na hora de provocar, inventar apelidos para zoar alguém, sempre pegando no ponto fraco, malvado, mas certeiro e engraçadíssimo, a ponto de as vítimas também rolarem de rir. Era um anjo safado. Um dia eu conto tudo.
Na sua generosidade, Moreno nos acolhia a todas, e a nossos namorados, maridos, filhos, sempre com toneladas de comida gostosa, passando por fases culinárias diversas, em sua casa do Lago Norte. Inquieto, novidadeiro, inventava jogos, karaokê, boate, reformas mis na casa, que hoje tem três andares que ele foi empilhando. Até um restaurante clandestino ele resolveu fazer em casa, num curto período funcionando às sexta-feiras. Mas quem disse que o Moreno sabia cobrar por comida? É claro que o negócio não deu certo. Ficou o restaurante maravilhoso, já com Carlucia, que depois foi parar no Rio – sem cobranças, é claro.
Tive o privilégio de estar lá quando ele criou e escreveu sua primeira coluna em O Globo, o Nhenhenhém. Como coordenadora de Política, cabia a mim copidescar e editar a coluna toda sexta-feira, e, por mais ocupada e angustiada que estivesse, ele não me deixava em paz enquanto eu não lia, dizia que estava boa e despachava para o Rio. Só que eu também sou implicante pra caramba. Um dia ele, ao descrever a indumentária de um personagem citado no Nhenhenhém, ele escreveu “camisa Apolo”. Eu comecei a rir no meio da redação e todo mundo viu, para supremo aborrecimento do Moreno. Depois daquele dia, a cada mudança que eu sugeria no texto ele falava: “vai, sobe na mesa, grita, anuncia pra todo mundo que você está corrigindo meu texto!”. Até ele morrer, a expressão “camisinha apolo” era um código entre nós.
Na última vez em que falamos, não brigamos nem fizemos troça. Foi um daqueles momentos de tristeza em que ele corria para consolar, nos chamando de “meu anjo”. Tinha acabado de perder meu pai, e ainda no hospital ele já ligava para dar o seu carinho. No dia seguinte, escreveu um lindo texto de homenagem ao Carlos Chagas em O Globo, onde os dois – e também eu – trabalhamos longos anos de nossas vidas. Devem estar lá no céu, num dedo de prosa com Ulysses, Tancredo, Flamarion e tanta gente mais.
Fico eu aqui, mais sozinha e desprotegida, reclamando que eles não podiam ter feito essa brincadeira de mau gosto de partirem os dois assim, de repente, num espaço de pouco mais de um mês.