Dois episódios ocorridos recentemente – ambos envolvendo relações trabalhistas – fizeram-me lembrar do personagem “Lógico” da peça teatral “O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco.
Ionesco é um dramaturgo de origem romena, criador do denominado “Teatro do Absurdo”, modalidade teatral que procurava abordar temas presentes fazendo uso do exagero, da caricatura, da criação de ideias absurdas para que o espectador caísse em si e percebesse a realidade circundante com olhos mais atentos.
A peça de Ionesco nos conta a história de um lugarejo que foi acometido por uma espécie de epidemia, a rinocerontite. O primeiro rinoceronte teria aparecido de repente, para espanto de todos. Alguns inclusive negaram a sua existência, o desprezaram. O negacionismo de sempre. Mas pouco a pouco, um a um, os habitantes locais findaram por ser contaminados e transformados – eles mesmos – em rinocerontes, com pele rugosa e chifres.
Um dos personagens da famosa peça não possui nome próprio. É chamado ou identificado apenas como o “Lógico”, porque vivia fazendo uso de silogismos, ainda que de forma incorreta ou atécnica, para chegar a conclusões estapafúrdias.
Eis um exemplo da lógica do personagem:
Todos os gatos são mortais.
Sócrates é mortal.
Logo, Sócrates é um gato.
Os acontecimentos que envolveram uma grande empresa nacional e a polêmica que recaiu sobre a sua política afirmativa referente à criação de um curso trainee unicamente para afrodescendentes fizeram-me revolver à lógica do “Lógico”.
Vejamos:
A Constituição Federal considera as manifestações de racismo um crime inafiançável .
A política afirmativa da empresa é uma manifestação de racismo.
Logo, a política afirmativa da empresa constitui um crime inafiançável.
Não é sensacional?
Bela maneira para se condenar as políticas afirmativas do Brasil, não?
Bora criminalizar o sistema de cotas nas universidades, as reservas de vagas em concurso, o programa trainee instituído pela famosa empresa brasileira?
É o silogismo enviesado e particular do personagem “Lógico” avançando pelas mentes brasileiras.
Mas o mecanismo de “O Rinoceronte” não parou por aí.
Na mesma semana ouvi falar de uma decisão judicial que teria homologado um acordo em que um trabalhador, por ter perdido uma ação trabalhista, teria concordado em realizar prestação de serviços públicos em sua comunidade, como alternativa ou “pena” pelo não pagamento dos honorários advocatícios da parte contrária.
Retomemos aqui o argumento do “Lógico “ para considerarmos dois pontos que decorrem da premissa que deu origem à pena alternativa.
O primeiro aspecto a ser perpassado pela lógica do personagem de Ionesco seria um desdobramento natural da condenação precedente: a imperiosa necessidade de gradação das penas, a depender da gravidade da situação.
Vamos ao exemplo do empregado que alegou ter prestado 5 horas extras diárias a seu empregador mas que só provou uma hora. A perda da falangeta poderia ser a pena a ser aplicada. Se não tivesse comprovado nenhuma hora, a perda do dedo inteiro seria mais adequada e proporcional.
Já aquele que alegou a existência de desvio de função e não conseguiu comprovar o ilícito responderia com 50 chibatadas.
Insalubridade não comprovada no ambiente de trabalho – 100 chibatadas.
Falta grave – é melhor nem pensar…
O segundo ponto a ser considerado é que o raciocínio inverso também seria “logicamente” possível . Sendo assim, os juízes trabalhistas também estariam autorizados a estabelecer “penas” aos inúmeros empresários devedores de títulos trabalhistas, por meio de prestação de serviços comunitários.
Levando-se em consideração a quantidade de descumprimento das obrigações trabalhistas neste país e o número de execuções que se arrastam por anos a fio, seria um festival nunca antes visto em termos de prestação de serviços comunitários no Brasil.
O Rinoceronte está ai, trazendo uma nova e contagiosa epidemia. Foi chegando devagar e se instalando.
Mas tenho uma noticia boa. Bérenguer, o personagem principal do livro, é o único a resistir à metamorfose “rinocerôntica’.
Sempre há uma esperança. Ainda que pequena.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada