Eu já sou tão experiente, ou experimentada (adjetivo para quem quer ao mesmo tempo manter escondida sua idade, e ainda dizer coisas picantes ao ouvido de alguém) que me recordo dos anos 70 do século passado de forma mais, digamos, palatável. Sobretudo, palatável aos que negam que tivemos uma ditadura civil-militar que prendeu e arrebentou muita gente no período entre 64 e 85 (e perdura até hoje, aqui e ali em leis e práticas do dia a dia, em cima de brasileiros da turma dos três ps (preto, pobre e puta) e/ou sobre ideológicos maníacos de esquerda).
Não falo de tortura nem número de desaparecidos.
Fico recordando episódios como o que se passou com um cantor agora já meio “passadinho” mas que conserva todo o frescor (sem frescuras) que ostentava, para escândalo de muita gente na época: refiro-me a Ney Matogrosso.
Foi um verdadeiro acontecimento, de arrasar mentes e corações dos jovens, o surgimento dos “Secos e Molhados”, um conjunto musical onde pontificava um garoto esguio (até hoje, do alto de seus 79 anos!) , muito alto mesmo (aqui – de altura ) e, pasmem-se! – que se apresentava nu da cintura para cima, cantava com voz de falsete muito bem afinada, dando agudos e graves inesquecíveis e agitando nossa imaginação até ali só preparada para ouvir baladas e rocks em inglês, depois do verdadeiro massacre das canções de protesto de Vandrés e Chicos Buarque da vida… E ainda rebolava no palco. Isso mesmo: re-bo-la-va, como poucas mulheres que a gente conhecia, usava uns enfeites gigantescos na cabeça e uma maquiagem ora fantasmagórica, ora semelhante aos blocos carnavalescos dos “Clóvis” ou “Bate-bolas” – aonde foram parar esses blocos, meu Deus?! -, Ney encantava gregos e troianos, jovens, adultos-jovens, como eu mesma naquelas priscas eras, e até a criançada.
Lá em casa meus filhos de cinco, sete e dez anos morriam de rir de felicidade e queriam ver e ouvir os Secos e Molhados, “O Vira”, o tempo todo, fazendo hora para irem pra cama e repetindo com suas vozinhas infantis: “O gato preto cruzou a estrada/passou por debaixo da escada-a-a/ e lá no fundo azul/ no noite da floresta/ a lua iluminou-o-ou a dança, a roda, a festa… Vira, vira/ vira, vira/vira homem…vira/vira lobisomem…”. Antes de dormir, exaustos de brincar, meus filhos ainda balbuciavam “mamãe, o quer dizer isso, um bicho que vira gente? Isso pega menino????” – dizia sobretudo meu filho macho.
E o conjunto estourou nas rádios!!! Tocava noite e dia. E todo mundo ficava esperando que passasse um especial nos poucos canais de televisão da época ou que eles viessem fazer show na cidade onde a gente morava. Isto é, os jovens-adultos e não as crianças, porque aquele rebolado… sei lá!!!… hei?!… Não é novidade alguma ter pessoas graúdas preocupadas com o mau exemplo para os menores de idade…
Em 73, uns jovens brasileiros – fazendo o que muitos então faziam, que era esconder suas músicas por detrás de originais em inglês – medo da censura? (Qual censura? Censura nos anos setenta???!!!!) Coisa de insanos que não viam o “Brasil Grande, Ame-o ou Deixe-o”. E esses jovens, sem ter o que fazer, acompanharam a plenos pulmões o grupo musical “Light Reflexions”, entoando e todo mundo cantando uma música chamada ‘Tell me once again”…
Tempos bons… tempos que não voltam mais… tempos sem pandemia… tempos em que a gente podia viver na rua…
E tome “Tell me once again”!!!
Dez anos depois, quando os “Secos e Molhados” já tinham morrido e o tal de Ney Matogrosso continuava a escandalizar, agora cantando solo uma musiquinha que também foi logo para as paradas de sucesso: “Calúnias”. Todo mundo se entreolhava e morria de rir, vendo um gay mais gay que muitos gays no armário, e um gay que não sairia mais de moda (graças a Deus!!! Deus é Pai!) esgoelando pra todo mundo ver a seguinte letra: “Telma eu não sou gay/ diz que vai dar, meu bem/seu coração para mim/ eu deixei aquela vida de lado/ eu não sou mais um transviado… Telma, eu não sou gay, o que falam de mim são calúnias, meu bem, eu parei, eu parei, eu parei…”. A música entrava no seu ouvido e não saía mais, você cantarolando baixinho, dia e noite, dava até raiva não conseguir esquecer a desgraçada da música … “Telma eu não sou gay”…
Bons tempos aqueles quando nada podia ser dito às claras e as músicas eram cantadas em inglês…
Melhores ainda os tempos em que, numa versão de Leo Jaime, Ney Matogrosso cantava a plenos pulmões, em português castiço: “Teelmaa, eu não sou gay”… Tempos de fins da ditadura.
Muito melhores do que estes de pandemia e de pandemônio político e social…