Não me surpreende que o presidente da República só se dê conta, pela imprensa, de ter sancionado uma lei, em fevereiro deste ano (Lei nº 13.979, de 2020), que dispõe sobre vacinação obrigatória, a despeito de ele próprio considerar esse procedimento uma violação das liberdades individuais. São muitas as demonstrações de o quanto ele desdenha da ação governamental. Não é vocacionado para governar. Confunde governar com mandar; só sabe dar ordens. São muitas, também, as demonstrações de o quão tosca é a sua visão do mundo.
O que me surpreende é não ter ele, ainda, substituído o nome da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) − instituição de renome mundial, a maior e mais conceituada produtora de vacinas na América Latina − por Fundação General Silvestre Travassos, em homenagem ao líder da revolta da Escola Militar da Praia Vermelha, no dia 14 de novembro de 1904. Aquela revolta, verdadeira pândega, que, derrotada em poucas horas, chegou a ser definida como “bufonaria golpista de quinta categoria”. Uma grande comédia de erros. Pensando melhor, talvez Bolsonaro nem saiba disso.
O General Travassos era ardoroso apóstolo do credo positivista. Acreditava, com base nessa doutrina, que questões de saúde estavam afetas ao “poder espiritual” e que, por isso, o Estado não deveria imiscuir-se a ponto de impor, no caso, a vacinação contra a varíola, que passara a ser obrigatória, desde a aprovação de lei nesse sentido, duas semanas antes. Pensava ainda que o “poder temporal”, assim procedendo, estaria a violar a liberdade de escolha e a inviolabilidade do lar, conforme apregoavam os positivistas.
Bolsonaro parece rezar na mesma cartilha. Viva o General Travassos! Abaixo Oswaldo Cruz! O grande discípulo de Louis Pasteur, festejado por ter controlado a febre amarela no Rio de Janeiro, havia sugerido ao presidente Rodrigues Alves, ante o surto de varíola que assolava a capital da República, tornar obrigatória a vacinação de toda a população brasileira. Verdadeiro ato de tirania! – diria, nos dias de hoje, Bolsonaro. Portanto, por que não retirar Oswaldo Cruz de seu pedestal e nele instalar o General Travassos, que veio a falecer em decorrência de ferimentos sofridos na refrega daquela “noite negra sem luz alguma”, como a definiu, anos mais tarde, o General Lobato Filho?
A “noite do quebra lampiões” importou, dois dias depois, o fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha, também conhecida como “Tabernáculo da Ciência”. Ironicamente, algumas centenas de jovens oficiais e alunos do Exército com formação “científica” foram, naqueles dias nervosos, acometidos de um surto de irracionalidade e desprezo dos conhecimentos científicos na área da Medicina.
Há aproximadamente um século se conheciam métodos eficazes de prevenção contra o vírus da varíola. No início do século XX já se sabia que a propagação da doença poderia ser sustada pela imunização coletiva. Tornar a vacinação obrigatória não era uma questão de violar a liberdade individual, mas de impedir que cada um, (a par de se proteger) se tornasse um agente propagador da doença. Tratava-se, pois, de assegurar a vida de todos, para que todos pudessem exercer suas liberdades individuais.
Simples assim: uma questão de saúde pública.
Na verdade, a insurreição da Escola Militar da Praia Vermelha foi uma tentativa canhestra de golpe militar. A “mocidade militar” sentia-se órfã, assistindo ao domínio das oligarquias em desprestígio dos ideais de Benjamin Constant e Floriano Peixoto. Queria a “refundação” da República de 1889. Para tanto, insuflada pelo Senador Lauro Sodré, um oficial do Exército que concorrera à Presidência da República em 1898, tratou de cavalgar uma revolta popular, na qual a obrigação da vacina fora apenas a gota d’água. O plano era este: deposto Rodrigues Alves, Lauro Sodré seria proclamado presidente da República pelos círculos castrenses que o apoiavam.
O levante popular era liderado pelo operário Vicente de Souza e o mítico Horácio José da Silva, o “Prata Preta”. O povo insurgia-se contra as remoções de favelas levadas a efeito pelo prefeito Pereira Passos, em seu intuito de urbanizar o Rio de Janeiro; contra o fechamento, na esteira dessa modernização arquitetônica, de centros de práticas religiosas de origem africana. É neste contexto que crescia o temor de violação dos domicílios para que as pessoas fossem vacinadas à força. Revoltaram-se, ainda, contra a precariedade dos transportes coletivos; e contra o arrocho salarial. Nesse caldeirão de insatisfações, Lauro Sodré procurou insinuar-se, sem sucesso, também como líder das camadas rebeladas.
No balanço, computaram-se, entre os revoltosos da Praia Vermelha, dois mortos e três dezenas de feridos. O “Tabernáculo da Ciência” foi bombardeado por tropas leais ao governo e depois fechado. Os oficiais e alunos insurretos foram presos, transferidos e, no ano seguinte, já retomavam suas carreiras militares. Em 1905, Lauro Sodré seria anistiado. Mas do lado do povão, mais de trinta mortos, centenas de feridos e milhares de presos. Praticamente a metade dos detidos foi condenada à pena de desterro e enviada a seringais no Acre. Muitos lá nem chegaram. Morreriam a caminho, nos porões de navios-prisão.
A vitória final, porém, não foi do governo. Foi do obscurantismo científico. A lei que tornava a vacinação obrigatória foi imediatamente revogada.
Triste Brasil era aquele, um lugar em que obscurantismo científico e ditadura militar andavam de mãos dadas. Isso lembra algo ao leitor? Não são apenas “tempos sombrios” os que estamos atravessando, como gosta de dizer o ministro Marco Aurélio. São tempos de regresso. Parece que recuamos a novembro de 1904. Mas há algo que, desde então, não muda: quando o cipó de aroeira vai lamber no lombo de alguém, este lombo será o do pobre, o do negro, o do favelado.
* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMG