Em 1982 eu trabalhava como redator numa revista, na cidade de São Paulo. A redação ficava num endereço da Vila Mariana. Eu trabalhava numa pequena sala de 12 metros quadrados, com uma janela que dava diretamente para a movimentada rua Domingos de Moraes. Era verão e um ventilador velho e combalido se esforçava para aliviar o calor da tarde. O ronco do cansado motor engrossava o bulício da cidade. Eu chegava às 13 horas e trabalhava até as 19 horas. Tinha um intervalo de 15 minutos. O tempo era suficiente para cumprir uma rotina cuja lembrança carrego até hoje. Na memória e no paladar.
Eu escrevia numa velha máquina Olivetti Línea 88. As teclas eram macias, anatômicas, os dedos não precisavam fazer muita força para acionar os caracteres metálicos. O ruído do caractere atravessando a fita impregnada de tinta e manchando o papel era música para meus ouvidos. Um som contínuo, o ritmo da escrita. O início de uma carreira que me faz bem até hoje. Aprendi a escrever nessas máquinas. Ainda guardo uma delas em minha casa.
Às 15h30, eu saía para o lanche. Às vezes saía às 16 horas. O horário podia mudar. Mas o hábito nunca. Descia as escadas até o andar térreo. Alcançava a calçada ensolarada. Virava para a esquerda e, duas quadras à frente, numa esquina, chegava a meu destino: uma padaria. Em São Paulo, padarias são uma instituição. O paulistano adora. Ele costuma tomar café da manhã, almoçar, fazer o lanche da tarde e ainda passar rapidinho no início da noite para o chopinho do happy hour. Tudo na padaria. Alguns aproveitam e levam o pão para o lanchinho de antes de dormir. O paulistano só não dorme na padaria porque não há hospedagem. Senão, acho que dormiria.
Hoje, as padarias estão mudando. Ganharam sofisticação, decoração interna, ficha para entrar e pagar. Ganharam requinte, mas perderam o charme dos velhos tempos. É um novo momento.
Mas ainda há padarias que mantém o formato tradicional. Principalmente em São Paulo. Um longo balcão de mármore, banquetas às margens dele. Dentro, funcionários, geralmente homens. No caixa, o dono, muitas vezes um português ou seus sócios. Sempre atentos a tudo. Os funcionários costumam trabalhar muito tempo na mesma padaria. Envelhecem no mesmo emprego. Não sei se por gosto ou necessidade. Mas é bom vê-los sempre ali. Envelhecemos com eles.
Esta padaria era assim. Um longo balcão com tampo negro de granito. Na base, um grosso cano de metal para apoiar os pés. Eu preferia ficar de pé, num canto sem banquetas.
A motivação para eu ir até ali toda a tarde era simples. E deliciosa. Nada mais era do que comer um gostoso pão com manteiga, junto de uma média com leite. Nada mais.
O funcionário já sabia o que eu o queria. “O de sempre?”, perguntava-me. Eu respondia que sim. Com uma rapidez e habilidade típicas de quem faz isso o dia inteiro, ele pegava um pão francês e prontamente o abria exatamente ao meio, no sentido longitudinal. Na parte interna do balcão havia uma travessa com um grande bloco de manteiga. A cor era amarela, quase gema. A manteiga brilhava. E ficava na temperatura ambiente. Com uma faca, ele pegava uma generosa e cremosa porção e distribuía nas duas metades do pão, que repousava num pratinho puído de porcelana branca. Com um guardanapo de papel embaixo.
Esta manteiga me remetia à infância. Eu costumava, quando menino, passar alguns dias no sítio de meus tios. E, às vezes, minha tia dava-me uma incumbência. Ela amarrava num galho horizontal de uma árvore uma corda. Pendurada nela havia uma leiteira de metal de 50 litros. Dentro, pura nata. Eu ficava chacoalhando a leiteira por muito tempo, não sei quanto. Sei que, magicamente, aquela nata alva e cremosa se transformava em flocos de manteiga amarela e perfumada. Não era uma tarefa. Era um prazer. E aquela manteiga da padaria me lembrava a manteiga que eu mesmo produzia na infância.
O pingado não era feito com café expresso. Era café coado numa antiga cafeteira elétrica de aço inoxidável impecavelmente limpo e brilhante. Lembro-me da marca da cafeteria: Monarcha. Sobre ela havia uma coroa de metal. Inesquecível. O café quente e aromático saía por uma torneira, na base da cafeteira. Por outra torneira saía água quente, para quem queria um café mais fraco, o chamado carioquinha.
Ao lado da cafeteira repousavam dois bules de metal dentro de um tanque de banho-maria, um esterilizador. Ali estava o leite. O atendente colocava 2 partes de café dentro de um copo americano de vidro. E acrescentava uma parte de leite. O líquido preenchia três-quartos do copo. Sobre o balcão de granito, à minha frente, o funcionário repousava o pratinho com o pão e o copo de café com leite. Estava pronto o meu banquete.
O perfume da manteiga impregnava meu olfato. Aquele cheiro levemente doce, lácteo, que se somava ao aroma levemente salgado do pão. Era um conjunto perfeito. O mundo sabe disso. E celebra esse casamento diariamente, pelas manhãs.
A manteiga era deliciosa. A temperatura e textura em que era servida eram perfeitas. A quantidade também. Havia técnica naquilo. Uma técnica cotidiana e imperceptível aos olhos dos clientes que entravam apressados na padaria. Mas deliciosamente reconhecida no paladar.
O gosto do pão também era particular. Era único. O pão daquela padaria. A manteiga se desfazia na boca, abençoava as papilas gustativas. O pão crocante agregava textura à mastigação. O mesmo pão, crocante todos os dias, limpava a manteiga da boca. E aí entreva o café com leite, para terminar o serviço. Geralmente o copo chegava tão quente ao balcão que era impossível, de imediato, segurá-lo com as mãos. Era preciso esperar esfriar um pouco.
Eu usava um pouco de açúcar na média. Não muito, o suficiente para o gosto levar conforto ao paladar. Ainda mastigando o pão, irrigava a boca com a escaldante conjugação do amargo do café com a maciez do leite e a doçura do açúcar. Tudo virava uma sinfonia. Era perfeito no paladar.
Em alguns momentos, eu me lembrava novamente da infância. Eu, sentado no colo de minha avó, dentro de uma cozinha com as paredes manchadas pelo fumo do fogão a lenha, iluminada apenas pela luz branda da tarde que entrava pela janela. Minha avó preparava uma mistura de café com leite numa pequena tigela de porcelana branca. Passava a manteiga no pão, rasgava o pão em nacos imperfeitos e os mergulhava na tigela de café com leite. No colo dela, eu recebia colheradas dos deliciosos bocados embebidos em café com leite. Aquilo se desmanchava na boca. E todos os sabores atravessaram uma vida, na memória. Uma linha fina entre o passado e o presente.
Na padaria, eu procurava comer calmamente. A vontade era devorar rapidamente aquele pão com manteiga e pedir outro. Mas o orçamento era justo. Ainda não terminara meus estudos e trabalhava para pagá-los, junto da moradia e os demais custos da metrópole. Então, era um pão com manteiga e uma média por dia. De segunda a sexta.
Satisfeito e feliz, eu voltava para a redação, para o segundo turno do trabalho. Revisava textos, escrevia na velha Olivetti, fazia títulos, escolhia fotos, falava ao telefone. Era a rotina. Tudo ao som do velho e incansável ventilador de mesa.
Ainda hoje procuro nas padarias o sabor daquele pão com manteiga. Ele nunca saiu de minha memória. Encontro algo parecido. Não igual. E sei que não encontrarei. Isso porque junto daquele modesto lanche da tarde havia uma moldura que ficou eternizada no tempo.
Havia uma padaria numa esquina da rua Domingos de Moraes, que não sei se existe mais. Havia uma redação de uma revista num edifício da mesma Domingos de Moraes que, repetindo a rima, também não sei se existe mais. E havia um jovem idealista, estudante de jornalismo, que começava sua vida. Um jovem que exigia pouco da vida. E sonhava muito. E que, naquelas tardes, materializava um de seus modestos sonhos no melhor pão com manteiga e média com leite de sua vida.
* João Alexandre é jornalista, cozinheiro e sommelier. @joao.lombardo