O centrão é a designação imprópria da tripulação composta por indolentes mandriões da política, cuja bússola é a expropriação. O batismo da esquadra embute lendas. O aumentativo ilude. Se vendem como porta-aviões, mas não passam de barcaças solteiras do réveillon de Copacabana, de luminosidade efêmera. No Senado é um navio fantasma, inexiste. Buzinam uma falsa coesão ideológica, de moderação entre extremistas, e âncoras da estabilidade e previsibilidade. Mas o mercantilismo é o único lastro que une essa nau de bandeira pirata. O liberalismo é retórico, desmentido pelo apego ao estado inchado, aparelhamento da máquina pública, compadrio, desprezo às carreiras e aversão às privatizações.
Na borda ética é um nó. Muitos oficiais e marujos são investigados, suspeitos ou já amargaram os porões da cadeia por surrupio. São hematófogos que ressuscitam na iminência dos tsunamis, intrínsecos ao presidencialismo. Alguns lobos do mar são imorredouros, como Roberto Jefferson e Valdemar Costa Netto. Sentenciados que se prontificam até a pilhar a própria democracia pela mamata. Há tentativas de modernizar a armada, com novos tenentes remando em nome de oligarcas desgastados. Todas gerações desprezam conceitos básicos da democracia, cidadania, ética ou interesse público diante da promessa de moedas e barras de ouro do baú estatal.
Surgiram, como retardatários, na tumultuada regata da Assembleia Nacional Constituinte (1987/88). O atraso explica, em parte, a sofreguidão característica dos arrivistas. Os segmentos progressistas, por manobra ousada do timoneiro da Constituinte, Ulysses Guimarães, ocuparam postos estratégicos no convés, embora fossem minoria. Mário Covas liderou o PMDB e indicava relatores e presidentes de comissões. Fernando Henrique Cardoso foi relator do regimento interno. A partir daí a navegação à bombordo contou com uma longa calmaria.
O debate na constituinte foi dividido em 24 subcomissões temáticas que desaguaram em 8 grandes comissões de debate e deliberação, antes de seguir para chamada comissão de Sistematização, responsável pela primeira feição cidadã da nova Carta. Os avanços de proa no capítulo dos direitos individuais e coletivos balançaram os conservadores. Eles reagiram tardiamente para reorientar o barco rumo a boreste no curso econômico. Recuperaram aí algumas milhas náuticas. O primeiro porta voz foi o deputado Expedito Machado, pai do futuro senador e delator da Lava Jato, Sérgio Machado.
De lá para cá, o centrão atracou confortavelmente em todas as marinas governamentais. Irrelevante se o vento sopra à direita ou à esquerda. Indispensável é enfunar as próprias velas rumo ao mapa da mina dos tesouros públicos. Pretensos sinalizadores da governabilidade foram chamados nos naufrágios de Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff, ambos com os cascos avariados. Nas escotilhas coloridas não entregaram o prometido. Depois de Collor passar o leme da coordenação a Ricardo Fiúza, ex-almirante, o sonar descalibrado de Roberto Jefferson chegou a proclamar que o Titanic do “caçador de marajás” singrava para um porto seguro. Pura neblina. Foi cassado e inabilitado.
No ancoradouro petista, o centrão capturou confortáveis camarotes. Mais uma vez ruiu a palavra de marinheiro empenhada na fisiologia. A frota contava com torpedeiros poderosos, como os ministérios da Agricultura, Cidades, Transportes e Indústria e Comércio. Com a embarcação adernando, abandonaram o navio com as boias e salva-vidas disponíveis. Alvo de um motim, Dilma obteve 137 votos na Câmara e foi afastada. No Senado, 6 ex-ministros da ex-presidente votaram contra ela. Com desempenho digno de um marinheiro de primeira viagem, insuficiente para governar, perdeu a habilitação de seguir a bordo do iate presidencial.
Na atual capitania o centrão começou a embarcar sutilmente pela popa, depois que os armadores golpistas submergiram. Imediatos ocuparam cabines internas em andares inferiores da segunda classe: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Banco do Nordeste do Brasil, Fundação Nacional de Saúde, Departamento Nacional de Obras contra a Seca, Companhia Brasileiro de Trens Urbanos, Itaipu etc. A inibição, típica dos dias iniciais do cruzeiro, cessou. Agora estão refestelados nas suítes do transatlântico com apetite e sede imoderadas. O sonho do Barba Negra sempre foi a 1 classe.
Eles perfilam perto de duas centenas de marujos, fragmentados em botes de sobrevivência: PP, PSD, DEM, PSL, PRB, Solidariedade, PT, Pros e PSC. O resgate do capitão Bolsonaro rendeu ao PSD o reluzente ministério das Comunicações. O mesmo PSD arma a mina da CPMI das Fake News, a cargo do senador Ângelo Coronel. Os comodoros dos outros partidos irão reivindicar faróis de cintilância equivalente para evitar soçobros nas enseadas escarpadas da política. Cada votação demandará atenção à instável tábua das marés. Antecipar o comando da casa de máquinas da Câmara, que tem pelo menos 5 candidatos do mesmo grupo, também pode rachar a quilha e dividi-los.
Antes eram xingados de velha política, enxotados como corruptos. O fanfarrão das marolas golpistas, general Augusto Heleno, escorraçou o centrão. Na convenção nacional do PSL no dia 22 de julho de 2018 no Rio de Janeiro, parodiou um samba que fez sucesso na voz de Bezerra da Silva. Augusto caprichou: “Se gritar pega centrão, não fica um meu irmão”, substituindo a palavra “ladrão”, da letra original, pelo nome do bloco. O trocadilho rendeu fama. Agora, o faroleiro do golpe deve se sentir bastante mareado por compartilhar a cabine.
Eduardo Bolsonaro, o astrolábio rústico e disfuncional da atual capitania, também já repeliu os novos marinheiros da piroga governista: “O mais difícil do que chegar lá, é se manter lá. Eu queria tirar foto de cada um dos senhores aqui, para saber se em 2019, quando o couro comer pra valer, vocês vão se deixar seduzir pelo discurso do centrão ou se vão se manter firmes e fortes com Bolsonaro”, disse o aspirante na mesmo convenção. Adorador dos jipes e cabos, terá ótima convivência com os recentes taifeiros da nau à deriva. Afinal, o couro tá comendo.
Paulo Guedes não é clandestino no veleiro centrista, tem amarras antigas. Por isso acionou os radares de alerta para o maremoto que se avizinha. A economia já fazia água antes da pandemia e o horizonte é tempestuoso: recessão profunda ou depressão. Para o centrão o conceito de estado mínimo tem a fluidez das ondas. Gostam de gastança, farra com dinheiro público e, longe de desestatizantes, são patrimonialistas. O diário de bordo da nova equipe preceitua inchar o tombadilho com apadrinhados políticos até a superlotação. Lembra a tragédia do Bateau Mouche, em 1988.
Bolsonaro pescou, se muito, a habilitação de arrais amador para navegar em um mar revolto, infestado de vorazes tubarões, predadores no topo da cadeia alimentar e especializados na selvagem sobrevivência marítima. Por 28 longos anos dividiu o mesmo beliche e navegou nas procelas dessa guarnição. O centrão está tatuado no capitão. Foi filiado ao PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC, PEN e, por último, no PSL. A tempestade o obriga a aportar no estaleiro original, só que na condição de refém. Ele foi profético na escatológica reunião de 22 de abril: “Não vou esperar o barco afundar para tirar água”.
Ainda sem o timão e a ponte de comando, o capitão Bolsonaro nunca se afastou da intimidade confiável desses velhos e velhacos, os corsários mais notórios dos mares tropicais do sul. Para quem procura icebergs obstinadamente pode ser insuficiente. Borrascas, como a prisão de Fabrício Queiroz, provocam um rombo no casco e comprometem a estabilidade, aumentando o custo da solidariedade dos novos armadores.