A saia justa dos brasileiros na COP-25, que se encerrou no último domingo, lembra o contorcionismo do Barão do Rio Branco como negociador das fronteiras do Brasil com as potências europeias na virada do século XIX para o XX. Naquele tempo, ele teve que fixar as divisas com os gulosos franceses, ingleses e holandeses no norte do Brasil, como existem até hoje.
Com a plataforma das três Guianas, as superpotências coloniais da época pretendiam se lançar sobre a Amazônia. Usando mais diplomacia do que força militar, o País conseguiu se safar. Por que então agora o Brasil está sendo encurralado justamente no espaço de seus maiores êxitos políticos?
O Brasil foi demonizado na Conferência do Clima em Madrid, a COP-25. Não obstante, a Austrália esteja pegando fogo e a Califórnia em chamas, foram os incêndios florestais brasileiros que levaram toda a culpa pelas mudanças climáticas que ameaçam o meio ambiente com aumento da temperatura média da Terra. Alguma coisa está errada.
Quem manda na Amazônia?
O pomo da discórdia é a gestão, para não dizer a soberania, sobre o vale amazônico como um todo, e não apenas as reservas florestais que aparecem no noticiário. Uma das regiões ainda incógnitas do Planeta, este território é majoritária e estrategicamente controlado pelo Brasil. Daí uma das razões dessa crise. Esses movimentos pretendem contestar a legitimidade da soberania brasileira. Não será a primeira vez que isto acontece.
Como dono privado da Amazônia, o Brasil se arvora em dizer que na casa dele ninguém mais manda. Isto não é nada diferente, nem escandaloso, pois, à exceção de países ocupados à força por estrangeiros, todos os demais são senhores dentro de suas fronteiras.
O controle da Amazônia é a questão estratégica mais antiga do Brasil. Foi o primeiro pedaço de terra brasileira cobiçado pelas potências europeias. Não obstante duas expedições espanholas tenham navegado pelas águas interiores, no século XVII, em 1615, os portugueses exerceram seu direito pelo Tratado de Tordesilhas e fecharam a foz do grande rio.
Daí em diante o controle efetivo foi uma política de defesa e uma prioridade militar. Portanto, não é de hoje que as Forças Armadas estão por ali às voltas com essas ameaças. Vem de muito tempo.
A fortaleza de Belém constitui a primeira investida efetiva de Lisboa para se assenhorear do que hoje é o Brasil. Pedro Teixeira, em 1615, botou o pé na atual capital do Pará e deu por fundada a cidade em 1616. Seis anos antes do início da outra grande conquista europeia, a invasão holandesa, em 1624, fracassada.
Ou a tentativa de ocupação da margem esquerda do Rio da Prata, em 1680, com a fundação da Colônia do Sacramento, em frente a Buenos Aires. As tentativas francesas a partir de 1555, a França Antártica, no Rio de Janeiro, e a França Equinocial, em São Luís do Maranhão, inserem-se em outro contexto histórico.
Tomada da Amazônia
A tomada da hinterlândia amazônica, com o início da ocupação por súditos portugueses, iniciou-se logo em seguida pelos afoitos paulistas do bandeirante Antônio Raposo Tavares, que, em 1648, percorreram toda a região, descendo, por dentro, do Rio Negro até São Paulo.
Até meados do Século XIX os ermos do então chamado “Inferno Verde” saíram do radar das potências europeias. Pouco a pouco os hoje chamados portugueses (na verdade mamelucos e indígenas) foram entrando mato a dentro, catequizando os indígenas, fazendo o que se fazia para se adonar de terras.
O assunto andou pelas chancelarias na metade do Século XVIII, quando Lisboa e Madrid acertaram suas fronteiras sul-americanas naquela série de tratados que tem como ponto central o Tratado de Madrid, negociado pelo brasileiro Alexandre de Gusmão, e que, até hoje, é a base das fronteiras do Brasil com seus vizinhos hispânicos.
A Amazônia brasileira voltou à baila na segunda leva do colonialismo europeu. Com a derrota das potências coloniais tradicionais do século XVI, Portugal e Espanha, novos atores entraram em cena realizando novo tipo de conquista. Em vez de caravelas e missionários, aportavam com canhoneiras a vapor e empresas capitalistas chegam à frente dos burocratas dos governos conquistadores para, mais dia menos dia, ocuparem toda a administração do País.
Assim, ingleses, franceses, holandeses, italianos e alemães, nesta ordem, entraram pela África, Ásia e Oceania. Os mesmos de sempre. A América do Sul botou as barbas de molho. Mais uma vez, os militares brasileiros se movimentaram para garantir as conquistas dos bandeirantes.
Diante desses 400 anos de história, por que se espantar com as diligências dos chefes militares e dos diplomatas brasileiros quando veem o olho gordo das grandes potências cravados nos solos e subsolos dessa região? É simples.
De mocinho a bandido
Nesse meio tempo a região foi ocupada, surgiram algumas cidades, a economia teve fases boas e ruins, mas nunca as questões ambientais estiveram na linha de frente das pressões. Pelo contrário, o Brasil era modelo de boa gestão e preservação desses recursos naturais, avançando para visões de preservação e da exploração sustentável. De uma hora para outra tudo desandou e, de mocinho, passou a bandido. Como se explica?
Não é para menos. Os novos governantes entraram de peito aberto na mais infestada colônia de casas de marimbondos do Planeta. Com isto, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu um lugar ao lado do presidente norte-americano Donald Trump, que estava monopolizando a imagem do bad boy, criando atritos em todas as frentes.
Como nas vezes anteriores, o papel dos Estados Unidos foi ambíguo. Nas disputas com os europeus, o Barão do Rio Branco manobrava nos bastidores, ora acenando com a Doutrina Monroe para desencorajar possíveis intervenções; noutras, explorando as rivalidades e competições entre os colonialistas.
Nestas oportunidades, o presidente Stephan Grover Cleveland reafirmou os princípios daquela doutrina que garantia a hegemonia norte-americana no hemisfério. Ou seja, nenhuma potência europeia teria licença para agir nas Américas.
Um exemplo é um relatório de Rio Branco ao Governo, no Rio de Janeiro, quando negociava a arbitragem do Rei Victorio Emmanuel III, da Itália, na disputa com a França pelo Amapá. Escrevia o barão: “Penso também que o que contém principalmente o governo francês é o receio de complicações com os Estados Unidos da América e com a Inglaterra e talvez mesmo a desconfiança de que já tenhamos alguma inteligência com os governos dessas duas grandes potências para a interposição de seus bons ofícios no caso de ocupação militar do território contestado. A Doutrina Monroe, desenvolvida pelo presidente Cleveland, e os constantes embaraços que a Inglaterra procura suscitar na África e na Ásia à política colonial seguida desde algum tempo pela França devem ter feito refletir este governo”.
Risco de invasão é antigo
Não bastasse, a Inglaterra ocupara a Ilha de Trindade, no Oceano Atlântico, a 1.200 km na altura do Espírito Santo. “Era real a possibilidade de as potências imperialistas se apossarem de parte do território nacional”, diz o diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos.
O perigo de invasão não era alucinação. Nunca o Brasil teve um diplomata tão realista e lúcido. Ele lembrava que alguns anos antes, em 1895, tropas francesas lançadas da Guiana invadiram o Amapá, e tomaram sua capital, Macapá.
Foi um conflito que terminou com a retirada dos franceses devido a morte do comandante da força, capitão Lunier. A derrota custou o cargo do governador geral da Guiana.
Já antes, na década de 1830-40, a França invadiu o Pará, com a pretensão de incorporar à Guiana uma área de 500 mil km quadrados. Com isto, o território gaulês iria do Oceano Atlântico até o atual estado de Roraima, às margens do Rio Branco.
O que salvou o Brasil foi a Inglaterra ameaçar intervir militarmente para tirar os franceses da área. O explorador francês Henrique Anatole Coudreau, profundo conhecedor do embate, temia pelo pior. “O litígio territorial entre os dois países será resolvido pela ciência (diplomacia sobre dados históricos e geográficos) ou por meio de um conflito violento”.
Além do combate de Macapá, entre as tropas francesas e a resistência amapaense, não houve ações armadas. A solução foi encontrada com a arbitragem do rei italiano, que deu ganho de causa ao Brasil e a fama ao Barão do Rio Branco de mago da diplomacia.
Não é, portanto, descabida a doutrina militar brasileira de que é necessário que as Forças Armadas estejam atentas e adestradas para defender aqueles territórios, tantas foram as ameaças reais e os enfrentamentos militares e políticos, ao longo dos séculos. Então o que faltou para que esse mesmo discurso fracassasse tão espetacularmente em 2019?
Pedem-se respostas aos marqueteiros dos órgãos e entidades envolvidas. O recorrente imbróglio amazônico recomeçou, 100 anos depois, justamente com a França inconformada, os presidentes Bolsonaro e Emmanuel Macron trocando impropérios e até botando a mulher no meio. Que diria Juca Paranhos?