Durante décadas, tijolo por tijolo, foi-se aperfeiçoando o arcabouço institucional que, a partir de operações como a Lava Jato, conseguiu quebrar a crosta da impunidade eterna dos poderosos pelos malfeitos com dinheiro público. O resultado de maior impacto foi a punição no andar de cima, inclusive com a prisão de caciques políticos de todos os naipes e de alguns dos campeões do PIB brasileiro. Sem o mesmo estardalhaço, mudanças pontuais na legislação e a abertura de caixas-pretas sobre privilégios e salários estratosféricos em todos os poderes pareciam reforçar a tendência do resgate de um mínimo de respeito com o dinheiro do contribuinte. Esse efeito, digamos, da Lava Jato pode ter breve duração.
A adesão do presidente Jair Bolsonaro ao movimento que ministros do STF e caciques políticos há tempos articulavam com o propósito de cortar as asas de Sérgio Moro e enquadrar a Lava Jato mexeu no tabuleiro. Juízes, procuradores, auditores fiscais, policiais federais, protagonistas dos avanços no combate à corrupção, de repente se viram na berlinda. São alvos dessa ofensiva que, em nome de conter excessos de alguns agentes públicos, quer enquadrar a todos, e reduzir a autonomia dos órgãos de controle sobre o uso e o abuso com dinheiro público.
Dezenas, talvez centenas, de investigações já subiram no telhado. Uma penca por causa da canetada do ministro Dias Toffoli, que suspendeu todo e qualquer procedimento investigatório aberto, sem previa autorização judicial, com base em relatórios do Coaf e da Receita Federal. Essa decisão de Toffoli, a pedido do senador Flávio Bolsonaro, encantou o pai presidente da República, que saiu em cruzada contra a autonomia dos órgãos de fiscalização e combate à corrupção.
O retrocesso até agora mais visível é a suspensão de investigações. Mas o establishment político quer muito mais, inclusive a anulação de condenações. O PT joga todas suas fichas para tentar reverter a punição de Lula — ou pelo menos tirá-lo da cadeia, sem que passe pelo constrangimento imposto a outros condenados, como o uso de tornozeleira eletrônica. Outros caciques também estão à espreita. Eduardo Cunha também quer ir para casa. Michel Temer e sua turma no MDB, Aécio Neves e outros tucanos emplumados, os donos do PP e de outros partidos do Centrão também esperam se beneficiar do liberou geral.
Evidente que a reação da opinião pública, amplamente favorável ao combate à corrupção, pode melar o sonho dessa turma. Pelo menos de parte dela. Mas o vírus contra a mudança de costumes na política, na sociedade e na máquina pública já se sente à vontade para circular por aí. Ninguém quer abrir mão de privilégio algum. As corporações da elite do funcionalismo público já se organizam contra a anunciada reforma administrativa.
O escandaloso discurso do procurador Leonardo Azevedo dos Santos contra o “miserê” de seu salário de R$ 24 mil por mês só virou escândalo por ter de tornado público. Ele cobrou do chefe do Ministério Público de Minas Gerais “criatividade” para engordar os salários dos membros do MP estadual com “alguma coisa de plantão, de adicional de alguma coisa, de auxílio…”. Quem assistiu de perto a batalha do Conselho Nacional de Justiça, na gestão da ministra Cármen Lúcia, para cortar os penduricalhos de todos os tipos nos salários dos juízes país afora, sabe que essa guerra está muito longe de ser vencida. Sempre há um gestor “criativo” a postos.
É a mesma “criatividade” que, sob a batuta de Rodrigo Maia, os líderes dos partidos na Câmara planejam usar para reverter a decisão do Senado Federal — tomada em um momento que os políticos estavam em baixa e a Lava Jato em alta- de acabar com o foro privilegiado, um dos pilares da impunidade no país.
Pela decisão do Senado, nos moldes das mais modernas democracias, todos os cidadãos, inclusive as autoridades, são igualmente julgados nos crimes comuns pelos mesmos juízes. A solução criativa é que, no caso das autoridades, os juízes “investigam” mas não têm poder de decisão sobre os passos da investigação. Rodrigo Maia defende essa aberração: “Não está mudando foro nenhum. A investigação continua na primeira instância. Quem julga é a primeira instância. Agora, o que se está tentando negociar, é que as cautelares fiquem na instância anterior dos agentes públicos”,
Traduzindo: O deputado ou o senador será julgado em primeira instância, mas para que a investigação tenha acesso a seus sigilos bancário fiscal e telefônico, ele de alguma forma seja monitorado, ou até preso, a ordem deve ser do Supremo Tribunal Federal. Fica até pior que hoje em que o STF pode remeter em toda a sua inteireza para a primeira instância os processos de parlamentares que nada tenham a ver com o exercício do mandato.
De criatividade em criatividade, o establishment político conspira para que o Brasil o reino da impunidade eterna.
A conferir.