Guimarães Rosa sabia muito.
Dizer que o sertão está em toda a parte é atribuir ao termo diferentes variações semânticas, é dar a essa palavra uma expansão que vai de áreas territoriais conflituosas aos espaços mais recolhidos da mente, do coração, da memória, do inconsciente, da imaginação, tudo aquilo que nos leva às perguntas permanentes em torno do mistério da nossa existência, individual e coletiva, e dos seus limites.
Ainda nessa perspectiva material, o sertão como espaço físico, cabe registrar a integração entre o lugar e a pessoa que o habita e conhece. Assim como sertão com as suas condições climáticas, a sua topografia, a sua aridez e vastidão, a relação entre proprietários e os agregados, vaqueiros, jagunços, trabalhadores braçais, modula o homem como nos ensinou Euclides da Cunha n’Os Sertões, obra precursora e anunciadora do Grande Sertão: Veredas. Aqui também o homem se impõe e projeta o seu pensamento e a ação sobre o meio em que vive. Leitor atento, dentre outras correntes filosóficas e espirituais, de Platão – o princípio da idéia – e da tradição cristã – no princípio era o verbo – Guimarães Rosa acreditava que “… toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pensada, dada ou guardada, que vai rompendo rumo”. Mas o homem e sua palavra não estão dissociados do lugar, das condições materiais, embora possam transcendê-los: “Sertão sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…”
O sertão é espaço de disputas primitivas, ainda no estágio anterior ao Estado, pré-civilizatório do ponto de vista das instituições políticas e jurídicas, dos direitos e deveres da nacionalidade e da cidadania. Mas ao mesmo tempo, já é, por outro lado, o lugar das idéias, das palavras, das mais altas reflexões e indagações existenciais e humanas que vão emergindo, com a expansão da consciência, a construção do ser.
Vivendo o seu entardecer, o seu “despoder”, depois de ter sido o professor e jagunço Riobaldo, o Tatarana, o Urutu-Branco, o grande personagem rosiano reconhece que o sertão mudou (o Estado apareceu pelo menos mandando polícia para acabar com o jaguncismo e abrir algumas estradas). No entanto, continua sendo território imenso, indiviso, regiões distantes. Sertão como o lugar do deserto, no livro simbolizado no Liso do Suçuarão – onde se deram tantas e tão profundas conversões e vivências espirituais –, do silêncio, da quebra das comunicações, da ruptura com o mundo que não incorporou o sertão. “Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sentimento de conferir o que existe? (…) Sertão: estes seus vazios (…) Pediram notícias do sertão (…) o sertão nunca dá notícia”.
O distante, próximo sertão é, ainda, o lugar da fragilidade e da alegria: “O sertão tem medo de tudo (…) No sertão, até enterro simples é festa”. Nele, sempre presente a dualidade razão/loucura, pois que o sertão tem outros padrões próprios de racionalidade: “Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo”. Uma fala bem enquadrada na escola de Erasmo de Rotterdam e de Montaigne.
O mundo rosiano navega, como registramos, em muitas sabedorias, bibliotecas e culturas. Vai da tradição socrática, de Platão, de Aristóteles, de Plotino, a variadas vertentes da tradição cristã, portanto, boas raízes metafísicas; mas nunca traça rumo à certeza absoluta, sectária, fechada. Fica sempre o lugar da dúvida, das sombras, dos enigmas, dos entretons – “O que foi? O que é?”. “Jagunços em situação” é puro Heidegger e, com ele, a tradição do existencialismo, do ser aí. Outras tradições espirituais, como budismo, marcam presença no vasto romance: “É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…”
No roteiro não linear do Grande Sertão: Veredas, Riobaldo retoma, quando fala do seu primeiro encontro com Diadorim – o Menino –, o sertão como lugar da violência: “Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e a mão quadrada”.
Logo Riobaldo repõe o sertão no campo das palavras germinais e expansivas. Sertão agora como metáfora da vida com suas alternâncias de insegurança e paz, obscuridade e discernimento: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo…”
Nos giros memorialísticos de Riobaldo, o sertão torna-se o lugar da dúvida, do não sabido, “onde o oculto do mistério se escondeu”, como diria Caetano Veloso. Riobaldo não está contando a história de “uma vida de sertanejo, seja se for jagunço (…) Jagunço é o sertão. O senhor pergunte quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?” Riobaldo é um sofisticado narrador que fala sobre a beleza e o enigma das coisas, a matéria vertente, e sabe “onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta”.
Essa busca do saber, do lado não revelado das coisas, dos desvãos das situações, das pessoas e da memória, essa inquietação socrática do não-saber, encontra no sertão a sua plenitude: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas. Veredazinhas”.
O sertão incorpora mitos e místicos dos mais variados cantos do Brasil e do mundo. Os mitos e os arquétipos estão visíveis na figura inatingível, quase sobrenatural de Joca Ramiro ou do próprio Medeiro Vaz. Isso sem falar na personalidade indecifrável de Diadorim. Acrescem aos mitos as introspecções e manifestações religiosas, enriquecidas com as prospecções do inconsciente. O mundo das coisas esquecidas, confusas, mutantes, ensombreadas. Riobaldo narra para recuperar os fragmentos, as reminiscências, os desejos. O sertão torna-se o sem-lugar e todos os lugares na refrega existencial de cada um. O sertão está dentro e está fora, é o emergente, é a surpresa e o não-previsto: “Sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera (…). Agora o mundo quer ficar sem sertão. (…) se melhor não seja que tivesse de sair nunca do sertão”.
Ao mesmo tempo em que o sertão deve sair da condição de território bruto, sem lei, das paixões não-sabidas, e abrir-se às possibilidades dos conceitos, do conhecimento, da reflexão, da sabedoria e do acertado convívio social – ideal civilizatório de Riobaldo, o sertão não pode por outro lado tornar-se um mero conceito, espaço triste, desencantado, por demais racionalizado. Há que se preservar o mistério e a grandeza do sertão, um pouco de boas doideiras! Um mundo sem sertão é um mundo empobrecido, previsível, sem lembranças que se fazem presentes, é o “desencantamento do mundo”, para usar a conhecida expressão de Max Weber. A essa concepção desencarnada, burocratizada da vida, Guimarães Rosa contrapunha a sua, esperançosa, sertaneja, sempre-viva “que a miúdo viça e enfeita”.
“O mundo é mágico”.
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[Sertão – a forte palavra, IV será publicado no próximo domingo, 11 de agosto.]