Um fantasma ronda o governo federal. Não se trata do fantasma do comunismo, que Karl Marx e Friedrich Engels materializaram no “Manifesto” de 1848 (“Um fantasma ronda a Europa”…), mas o fantasma do apagão orçamentário, o shutdown, conforme a definição clássica.
O governo precisa aprovar, até o final de junho, um projeto que abre ao Orçamento um crédito suplementar de R$ 248,9 bilhões. Com a aprovação do crédito, o Poder Executivo estaria obtendo do Congresso uma autorização para o descumprimento excepcional da regra de ouro orçamentária, que preconiza um resultado corrente equilibrado.
Por Regra de Ouro entende-se o veto constitucional à realização de operações de crédito que excedam as despesas de capital (investimentos, inversões financeiras e amortização da dívida). O princípio está no artigo 167, inciso III da Constituição.
Caso o governo venha a descumprir a regra, o presidente da República incorre em crime de responsabilidade, que é passível de abertura de processo de impeachment. Este não é um risco iminente, mas não pode ser descartado, sobretudo porque estamos falando de um governo confuso, desarticulado e fraco.
Esta situação já vinha se desenhando há alguns anos. Estudo especial da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, registra um gradativo recuo da margem de cumprimento da regra fiscal desde 2013. Publicado em abril do ano passado, o estudo pode ser consultado na página da IFI na internet.
A partir de 2014, os sucessivos déficits primários (relação entre receita e despesas excluindo os juros) passaram a exercer pressão para o aumento das operações de crédito, que configuram endividamento.
Analista da IFI, Daniel Couri considera que a Regra de Ouro convive muito mal com resultados primários negativos. “Enquanto houver déficit primário a conta vai ser alta”, diz. Vale lembrar que o inédito descumprimento da regra previsto para este ano tende a se repetir, assombrando ainda mais este e, quem sabe, outros governos. Segundo simulações da IFI, a Regra de Ouro pode ser descumprida até 2024.
Sinal de alerta
Em dezembro de 2017, a Secretaria do Tesouro Nacional lançou, no relatório de política fiscal, o Painel da Regra de Ouro da União, mostrando a [baixa] suficiência para o seu cumprimento.
As estimativas davam conta de descumprimento em 2018, mas a entrada de receitas financeiras, como o pagamento de empréstimo à União pelo BNDES, permitiu o cumprimento da Regra de Ouro, com margem de R$ 35,8 bilhões.
Certa de que a bomba iria estourar em 2019, a equipe econômica do governo passado resolveu evitar o pior. Assim, concebeu a ideia do projeto de crédito suplementar para descumprir a regra. Isto porque o artigo 167, III, da Constituição admite a realização de operações de crédito superiores às despesas de capital, desde que autorizadas mediante crédito suplementar aprovado pela maioria absoluta do Congresso.
Ao invés de propor um Orçamento deficitário, o que seria desastroso, a equipe lançou receitas condicionadas. A solução engenhosa contou com previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias, adotada na Lei Orçamentária em vigor, condicionando R$ 248,9 bilhões do Orçamento Fiscal e da Seguridade à aprovação de créditos adicionais, nos termos do dispositivo constitucional.
O governo atual enviou o projeto ao Legislativo em março, propondo trocar despesas de alto valor concentrado por emissão de títulos de responsabilidade do Tesouro. Daniel Couri observa que são despesas relevantes do ponto de vista fiscal e sensíveis do ponto de vista social. Veja algumas das despesas elencadas:
▪ Benefícios Previdenciários Urbanos (INSS) – R$ 201,7 bilhões;
▪ Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e de Renda Mensal Vitalícia (RMV) – R$ 30 bilhões;
▪ Programas de Transferência de Renda – R$ 6,5 bilhões;
▪ Subvenção Econômica em Operações do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) – R$ 3,5 bilhões.
A vez do Congresso
Não vai ser fácil para o governo ter essa matéria aprovada no Congresso, não só pela exigência de quórum qualificado (257 deputados e 41 senadores) em sessão conjunta do Congresso. As dificuldades de articulação vêm sendo um lugar comum no relacionamento do Executivo com o Legislativo.
A necessidade de aprovação até junho não é uma exigência legal. É que, a partir de julho e nos meses subsequentes, as dotações orçamentárias dos programas indicados no projeto começam a se esgotar.
Relator da matéria, o deputado de segundo mandato Hildo Rocha (MDB-MA) rejeita a classificação das pressões de blocos parlamentares informais sobre o governo como chantagem e diz que fazem parte do jogo político. Ele não considera a hipótese de apagão na administração pública, mas admite o desligamento em alguns setores.
O deputado não acha que o Congresso deva ser responsabilizado por eventual descarrilamento da execução orçamentária. Na sua opinião, o ônus deve caber ao governo, que teria tido tempo, desde quando foi eleito, para mudar essa situação. Ele lembra que o Orçamento deste ano, aprovado em 2018, foi sancionado pelo presidente Bolsonaro.
Hildo Rocha, que vem conversando com a equipe do Ministério da Economia, apoia a aprovação do crédito extraordinário, mas defende a utilização de outras fontes de recursos que não as contidas no projeto do Executivo. Ele cita recursos do superávit financeiro (R$ 160 bilhões, segundo as informações de que dispõe), de restos a pagar (R$ 90 bilhões) e até das reservas internacionais (US$ 392 bilhões), por estarem aplicadas no exterior com baixa remuneração.
Consultores da Consultoria de Orçamento da Câmara, que estão debruçados sobre a análise do projeto e sua tramitação, observam que o rombo pode não ser dessa magnitude (R$ 248,9 bilhões), lembrando que o Relatório Bimensal de Avaliação de Receitas e Despesas divulgado em dezembro pelo Tesouro, fez uma estimativa de insuficiência da ordem de R$ 100 bilhões.
Um desses técnicos chamou atenção para a importância deste ponto, lembrando que governo e Congresso precisam chegar a um denominador comum. “O que está em jogo”, diz, “não é a autorização para despesas, mas para o descumprimento da Regra de Ouro”.
Audiência e votações
Por iniciativa do relator, a Comissão Mista do Orçamento vai realizar uma audiência pública, nos próximos dias, para subsidiar a análise do projeto. A audiência deve ter a participação de representantes da Secretaria do Tesouro, do TCU, de especialistas em finanças públicas e da Auditoria Cidadã.
O projeto precisa ser votado primeiramente na Comissão do Orçamento. No plenário, como lembra Hildo Rocha, a pauta das sessões conjuntas está trancada pelos vetos presidenciais (o portal do Congresso contabiliza atualmente 23 vetos a serem votados) e a oposição pode obstruir as votações, tornando-as excessivamente arrastadas.
* Carlos Lopes é jornalista e diretor da Agência Tecla / Informação e Análise