Marta Dillon, criadora do movimento feminista argentino “Ni Una Menos”
“(Derrubado o aborto legal), temos que tipificar melhor o que é estupro. Às vezes o estupro é um ato involuntário que uma pessoa sofre por parte de um abusador com quem tem uma relação de inferioridade, mas não chega a ser violento”.
Peronista Rodolfo Urtubey, que ajudou a derrubar a lei do aborto legal pelo Senado Argentino.
O Não venceu. Não ao aborto legal. Sim ao atraso. Por 38 votos contra, 31 a favor e duas abstenções, o Senado da Argentina rejeitou, na madrugada desta quinta, 9, o projeto de legalização do aborto, depois de cinco meses de exaltado debate que se estendeu do Parlamento às ruas. O projeto, esclareça-se, permitia o aborto até a 14ª semana. A Argentina, perdeu, como lamentou em nota a Anistia Internacional, “oportunidade histórica” e perpetuou o “ciclo de violência que se exerce contra as mulheres”. Nos países onde o aborto ainda é tabu, como o Brasil, os opositores tendem a encaixar um discurso espiritual fervoroso, como se o aborto fosse uma espécie de tentativa de controlar os desígnios divinos.
Não por acaso, lá como aqui, as manifestações pró-aborto emprestaram as roupas e lenços das aias da série “The Handmaid’s Tale” para incorporar o conservadorismo religioso. Na série, as criadas são mulheres férteis escravizadas e forçadas a gerar filhos para as classes mais ricas, num futuro em que a taxa de natalidade humana caiu para níveis muito baixos. Na Argentina, como aqui, menospreza-se o drama real: as milhares de mortes que ocorrem a cada ano por abortos ilegais – em sua maioria, mulheres pobres.
A sessão do Senado durou 17 horas. Entre os grandes partidos, somente o kirchnerismo votou majoritariamente a favor. Uma das últimas a discursar foi a ex-presidente Cristina Kirchner, que durante seu mandato esteve ao lado dos antiaborto, mas que declarou ter mudado de ideia. “Hoje penso diferente porque ouvi a voz das jovens, dessa geração de mulheres feministas que estão destruindo uma sociedade machista e patriarcal e precisam do nosso apoio.” O paradoxo da decisão do Senado, que manteve uma lei de 1921, é constatar que, como em muitos parlamentos latino-americanos, a bancada de homens é amplamente majoritária e impõe sua vontade. Só 100 das 257 cadeiras da Câmara dos Deputados são ocupadas por mulheres. No Senado, a mesma coisa. Cerca de 42% dos assentos é ocupado por mulheres e 58% por homens.
Divergentes buscou no site do jornal argentino Clarin a relação dos votos e fez as contas: Dos 38 votos que deram maioria contrária ao projeto, 24 foram de homens (63% do não) inclusive o ex-presidente Carlos Menem, e 14 de mulheres. Dos 31 votos a favor do projeto, 14 foram de mulheres e 17 de homens – muitos da bancada kirchnerista. Houve duas abstenções – um homem e uma mulher – e uma ausência – uma mulher.
O atestado da ignorância sobre a questão feminina – especialmente vindo de homens – pode ser refletido na declaração do peronista Rodolfo Urtubey, que disse que, derrubada a lei pró-aborto, era hora de “tipificar melhor o que é estupro”, explicando que aqueles que se realizam “com violência, nas ruas” são mais graves que os “intrafamiliares”, que ocorrem em casa. Talvez em breve queiram discutir também os direitos das mulheres ao voto, ao trabalho e aos filhos.
Entre as “verdes”, que nas ruas defendiam a lei do aborto, predominavam adolescentes e mulheres jovens. Entre os chamados “celestes”, mulheres mais velhas e homens. Com a rejeição do Senado, os “verdes” terão de esperar pelo menos um ano para apresentar um novo projeto de lei. A não ser que um referendo sobre o tema seja convocado. Aprovada em primeira discussão pela Câmara dos Deputados em 14 de junho passado, a proposta precisava da ratificação do Senado para se tornar lei.
As convicções religiosas se impuseram, assim, ao direito das mulheres de decidir sobre seu próprio corpo na Argentina, é bom lembrar, país do papa Francisco. Na América Latina, o aborto é legal apenas em Cuba, desde 1965, e no Uruguai, desde 2012. Também é permitido na Cidade do México. Em todo o mundo, o aborto é legalizado em 63 países e amplamente permitido em outras 13 nações, segundo levantamento do Center for Reproductive Rights, ONG baseada nos EUA que trabalha para influenciar a formulação de políticas públicas pró-aborto. Por outro lado, 124 países proíbem a interrupção da gravidez totalmente ou com poucas exceções.
Dentre os locais em que a prática é legal, as regras variam quanto ao tempo da gestação. A maioria estipula o tempo máximo de 12 semanas de gestação para o aborto. Mas há casos, como Singapura, em que ele é permitido em até 24 semanas de gestação da mulher. Com a rejeição do Senado, as únicas possibilidades de se submeter a um aborto na Argentina continuarão sendo em caso de risco de vida da mulher ou quando a gravidez for consequência de estupro.
No Brasil, discutiu-se essa semana a interrupção da gravidez em audiências públicas do STF – formalmente, a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. Não há prazo para Rosa Weber apresentar o seu parecer. Ela disse não ter pressa, porque era preciso “refletir”. O país, no entanto, tem pressa. Ao menos duas mil mulheres morrem ao ano por complicações de aborto ilegal. Em clínicas não confiáveis e sem ajuda médica nenhuma, a vida delas segue sendo ceifada. Anualmente, há uma estimativa de que são realizadas 250 mil internações no SUS relacionadas ao abortamento induzido. Ao mesmo tempo, cresce a violência contra a mulher. O número de estupros aumenta ano a ano. Em 2017 chegou a 60.018, o que significa 8,4% acima do ano anterior. Dados, evidentemente, subnotificados. Acorda, Rosa!