Por Cezar Motta. Fotos Nélia Marquez e Rodrigo Oliveira
Sem um exame criterioso, Cuba parece mesmo uma democracia. Afinal, quem elege o presidente cubano pelas regras vigentes é a Assembleia Nacional Popular, que tem 614 deputados eleitos diretamente pelo povo. O grande problema é que a maioria do povo, até às vésperas da eleição presidencial, não sabia exatamente quem era o candidato, ou melhor, quem seria ungido. Mas sabia perfeitamente que era impossível uma candidatura avulsa de oposição, por exemplo – o partido é único e controlado com mão de ferro, antes por Fidel Castro, hoje pelo irmão e herdeiro Raul. Assim como a Assembleia Nacional Popular.
O sistema eleitoral cubano que levou ao poder o novo presidente, Miguel Diáz-Canel, é complexo e indireto, e se inicia pelas circunscrições eleitorais, as divisões territoriais dos municípios em que os candidatos às assembleias municipais são eleitos. Há ainda as assembleias provinciais, que seriam equivalentes às assembleias legislativas brasileiras, e a Assembleia Nacional Popular, unicameral, com 614 deputados eleitos pelo voto direto e que escolhem o presidente. Cuba é uma república, mas unitária, não federativa. São 15 províncias e 168 municípios. Dos mais de 11 milhões de eleitores, cerca de 8,3 milhões têm direito a voto. Não existe campanha eleitoral, a não ser pequenos panfletos com o curriculum do candidato colados nas paredes das zonas de votação.
Há oposição?
O Poder Judiciário tem instâncias municipais e provinciais, primeira e segunda instâncias, e a última instância, a Corte Suprema, que é sujeita à Assembleia Nacional Popular. Há ainda as chamadas organizações populares, como as associações nacionais de trabalhadores e a Federação Cubana de Mulheres. Todos sujeitos ao controle do Partido Comunista Cubano. A população tem hoje liberdade para falar abertamente contra o governo, principalmente em questões relativas à economia, em conversas com turistas. A repressão começa, no entanto, quando surgem sinais de organização política que ponha em risco, ainda que irrisório, o regime socialista ou o esquema de poder. O serviço de informações cubanos é o mais eficiente das Américas, atrás apenas da norte-americana CIA.
Raúl Castro tem 87 anos incompletos, mas há herdeiros dinásticos, como o filho, o coronel Alejandro Castro, de 52 anos, e um ex-genro de Raul, o general Luis Alberto Rodríguez Lopes Callejas, divorciado de uma filha do irmão de Fidel, ambos com importantes cargos decisórios na economia do país, e considerados ortodoxos. O Partido Comunista Cubano e a Assembleia Nacional também têm quadros pré-revolucionários, ou muito identificados com a linha dura dos irmãos Castro. A grande incógnita é sobre a liderança de Miguel Diáz-Canel, se ele realmente tem ideias próprias sobre reformas e, mais do que isso, se teria poder político para implantá-las. Diáz-Canel é um burocrata discreto e disciplinado, quase obscuro.
Há movimentos de oposição clandestinos e invisíveis para um turista, porque existe apenas o jornal oficial Granma e as televisões estatais. Mas em uma eleição direta para a escolha de um presidente, parece não haver dúvidas de que Fidel, Raúl e Diáz-Canel venceriam facilmente. A propaganda oficial é imensa, as fotos de Fidel, Che, Camilo Cienfuegos, suas biografias, as referências à Revolução estão em toda parte. A insatisfação básica é da vontade humana de evoluir profissionalmente, de ganhar mais dinheiro, de ter mais conforto, de viajar de férias, de trabalhar na área em que se é formado.
Reformas econômicas
O que é visível e palpável entre a população é o desejo de mudanças econômicas, abertura comercial, possibilidade de acumulação, de ter a própria empresa, o próprio táxi, ampliar seus negócios, evoluir na profissão escolhida. Ou um emprego que garanta um bom rendimento. Diáz-Canel deu declarações duras quando estava em curso a abertura econômica decorrente das negociações entre Raúl Castro e Barack Obama. Garantiu que o objetivo do presidente norte-americano era “destruir a Revolução Cubana”. Quanto à abertura política, ou uma Glasnost cubana, o interesse não parece tão grande entre cidadãos comuns.
Algumas conquistas do socialismo cubano não podem ser negadas nem pelo mais empedernido anticomunista: há realmente assistência médica gratuita, educação universal, direito à habitação e ao trabalho. O que é duvidoso é a qualidade de tudo isso que é oferecido, e se apenas isso basta para que os cubanos sejam felizes. “O governo leva quase tudo que eu ganho”, queixa-se um motorista de táxi que atende aos hotéis de Varadero, ao volante de um Oldsmobile 1951, arrendado a um funcionário público aposentado. Além do governo, também o proprietário do automóvel embolsa a maior parte dos rendimentos do profissional.
O hostal de maior prestígio na cidade colonial de Trinidad, muito buscada pelos turistas, é o de Félix Bombino Espinosa. Com 68 anos, ele é formado em Ciências Políticas e História. O hostal é a sua própria casa de dois andares e um terraço para refeições. O imóvel tem dois precários quartos duplos que ele aluga para turistas. Com Bombino trabalham os dois filhos, Alexander e Adriano, ambos com curso superior, o primeiro formado em Engenharia e o segundo em Artes. Adriano dirige o velho carro, barulhento, fumacento, para um tour pela cidade e para levar os hóspedes a uma cachoeira.
Bombino e sua pousada estão no guia Trip Advisor, e são recomendados pelo escritório oficial de turismo, ao lado do Hotel Habana Libre. A diária é de 35 CUC (35 dólares) por quarto, preço que sobe bastante se o hóspede quiser fazer com ele as refeições. O microempresário não tem sequer um dente na boca e aparenta mais idade, apesar da energia física. E é um grande anfitrião. Lembra-se bem da revolução, da chegada de Castro em Havana e da passagem dos guerrilheiros por Trinidad. Mas os filhos são insatisfeitos. Adriano é artista plástico, tenta vender seus trabalhos, e gostaria de emigrar. Lembra-se com saudade de uma temporada na Venezuela, onde foi dar aulas, por meio de um convênio entre os governos. Ele acredita que seria mais feliz se pudesse sair do país – ou ver mudanças econômicas e até políticas. “Somos tratados como cachorros (perros) em nosso próprio país”, lamenta-se, ao ser proibido por um policial de passar por uma rua.
Melliá cubana
Trinidad é uma pequena cidade com arquitetura colonial espanhola, uma espécie de Paraty cubana, com grande número de turistas (principalmente jovens) da América do Sul e da Espanha em bares ou sentados nas calçadas até de madrugada. Depois de Havana, porém, a cidade mais procurada por turistas é Varadero, porque é um balneário com águas azuis e tépidas. São 16 hotéis da rede espanhola Melliá, e é da Espanha que vem boa parte dos turistas, assim como canadenses e norte-americanos.
O mais barato de todos é um complexo de dois resorts, de serviço conjunto, de propriedade do governo, Playa Calleta e Punta Arena. As reservas podem ser feitas pelos sites internacionais de hotéis, e a cerveja e o rum são gratuitos – ou melhor, incluídos no preço da diária. Mais de 80% dos hóspedes são russos porque, graças a um antigo convênio do governo cubano com Moscou, a diária é baixíssima para eles. São barulhentos, não respeitam filas, fumam em elevadores e lugares fechados e começam a beber cerveja e rum gratuitos às nove da manhã. Há também muitos canadenses, também beneficiados pela baixa diária, chineses e uma minoria de latino-americanos.
O Homem Perfeito
O homem próximo da perfeição, idealizado por todas as revoluções universais, desde a Francesa, de 1889, não foi construído por nenhuma delas. A boa impressão causada por Fidel Castro a cerca de 20 escritores e jornalistas em 1967, a vontade de construir uma sociedade que não desse importância a dinheiro ou a valores materiais, logo se desfez. Fidel disse ao fascinado grupo, que incluía o peruano Mario Vargas Llosa, que reconhecia falhas naquele estágio da Revolução, que havia corrupção, abusos de autoridade e vários tipos de excessos. Mas cuidava pessoalmente de corrigir tudo, quando as falhas eram apontadas. O monólogo de Fidel com os intelectuais começou à noite e só terminou de manhã. Parecia um socialismo tropical, gentil, um “caminho cubano, que nada tinha a ver com o soviético ou com o chinês”.
Quatro anos mais tarde, o próprio Vargas Llosa e mais 49 intelectuais assinaram uma carta a Fidel Castro, em que denunciavam, com “vergonha e ira”, um expurgo político semelhante aos de Stalin, que atingiu o dissidente político Heberto Padilla e outros adversários do regime. A carta comparava a perseguição a opositores aos “mais sórdidos momentos da época do stalinismo, com seus julgamentos pré-fabricados e suas caças às bruxas.” Assinava a carta gente como os cineastas Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais, e escritores como Italo Calvino, Carlos Fuentes, Sartre e Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Jorge Semprún, Susan Sontag, Juan Rulfo, Alberto Moravia. Boa parte deles ex-militantes nos partidos comunistas de seus países.
Quem foi Dorticós?
Fidel Castro também nunca conseguiu explicar de forma clara suicídios como o do ex-presidente Osvaldo Dorticós (1959/1976) e da heroína revolucionária Haydeé Santamaria, companheira de Fidel no ataque ao quartel de La Moncada e ex-presidente da Casa de Las Americas, que durante muitos anos ofereceu os prêmios literários mais cobiçados por escritores latino-americanos, inclusive os brasileiros. Nem mesmo o homem de quase 70 anos que serve de guia na pequena casamata na área externa do Hotel Nacional se lembra de Dorticós, ou sabe o que foi feito dele.
O Hotel Nacional, um ex-hotel-cassino de luxo, hoje estatal, era uma espécie de quartel-general da máfia ítalo-americana até 1959. Astros de Hollywood e europeus, milionários, chefes de estado, passaram por ali nos anos da ditadura de Fulgencio Batista. O hotel mantém o glamour, exibe fotos das celebridades nas paredes e tem as mesmas características dos anos de poder da máfia sobre a ilha. A casamata, em frente ao mar, é um pequeno museu sobre a chamada Crise dos Mísseis, que ameaçou o mundo com uma guerra nuclear durante 13 dias, em outubro de 1962. O velho guia nada sabe sobre Osvaldo Dorticós, que aparece em quase todas as fotos ali expostas junto a Fidel, durante a crise. Nem se lembra dele.
* Cezar Motta é escritor e jornalista. Autor de Até a última página, uma história do Jornal do Brasil