Vinda de um secretário de Estado americano, nenhuma declaração poderia ser mais abominável do que a defesa de golpe militar como agente de mudança política na América do Sul. Sob o governo de Donald Trump, como tudo é possível, Rex Tillerson fez afirmação pública nesse sentido ao expor a estratégia da Casa Branca para a América Latina na Universidade do Texas, em Austin, na última quinta-feira. Pouco depois, embarcou para uma jornada pelo México, Argentina, Peru e Colômbia.
Tillerson aludia especificamente ao caso da Venezuela, país para o qual prevê “mudança” em breve. Mas não deixou de associá-la ao entorno sul-americano, valendo-se de tempo verbal no presente. “Na história da Venezuela e dos países sul-americanos, às vezes o (setor) militar é o agente da mudança quando as coisas estão muito ruins e a liderança não serve mais ao povo”, afirmou. “Se esse é o caso aqui, eu não sei.”
Se não sabia, o secretário de Estado perdeu uma inestimável chance de manter-se calado. Em especial, diante de uma agenda de visitas a países que, como a Argentina, vivenciaram ditaduras militares sanguinárias que deixaram como herança, além do trauma político e institucional, desafios econômicos e sociais ainda não superados pelos seus governantes e sua sociedade. Sua frase não cabe nem mesmo como hipótese para o caso de flagrante desmonte da Democracia na Venezuela.
Nem mesmo Dean Rusk, William Rogers e Henry Kissinger, secretários de Estado entre 1961 e 1977, ousaram fazer declarações públicas similares enquanto as máquinas diplomática e de inteligência americanas se mobilizavam em favor dos golpes militares perpetrados no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, no Chile, na Bolívia, no Equador, no Peru e em outros oito países da América Central e do Caribe.
Com sua frase, Tillerson desconheceu os esforços pela redemocratização e pela construção de instituições sólidas na América do Sul nos últimos 30. Ignorou, acima de tudo, os valores democráticos defendidos sem hiatos internos pelos fundadores da Nação americana e os erros históricos cometidos por Washington ao estimular e apoiar movimentos militares que culmiraram em períodos autoritários no Hemisfério.
No México, os encontros de Tillerson com o presidente Enrique Peña Nieto e o chanceler Luis Videgaray giraram em torno da ampla agenda negativa construída pelo próprio governo Trump com o país vizinho: a construção do muro na fronteira, a renegociação do Nafta, a imigração ilegal e a repatriação dos que foram levados ainda crianças por seus país aos EUA, os chamados dreamers. Mas é dada como certa a sua intenção de discutir com os governos da Argentina, Peru e Colômbia o destino do regime venezuelano e a preparação da Cúpula das Américas, em 13 e 14 abril em Lima. O encontro poderá, pela primeira vez, colocar Trump e Maduro lado a lado.
Não se pode imaginar como Tillerson será recebido em Buenos Aires no próximo sábado, considerando-se o alto grau de interesse da Argentina em uma melhor relação econômica com os Estados Unidos neste momento. Tillerson foi suficientemente astuto para não repetir no México sua declaração sobre a utilidade dos golpes militares na América do Sul – nem mesmo para o caso da Venezuela. Desviou a atenção pública para o avanço da presença da Rússia e da China na América Latina, como se a região não tivesse interesse em mais e melhores investimentos americanos. Deverá controlar-se em solo argentino, onde desembarca neste sábado.
O secretário de Estado provavelmenete não deixará de bater em público no regime venezuelano, considerado por ele como “corrupto e hostil”. Nas entrelinhas, assim também o regime de Nicolás Maduro tem sido reconhecido pelo Grupo de Lima, composto por países da região que defendem a retomada democrática da Venezuela por meio do diálogo, entre os quais figuram o Brasil, a Argentina, o Peru e o Chile. O Grupo de Lima tem criticado veementemente atitudes do governo de Maduro que ferem as instituições e minam o Estado de Direito no país. Mas rejeita a alternativa do golpe militar.