Em 2013, o cineasta Walter Salles dirigiu, para uma rede de televisão francesa, um belíssimo documentário com Chico Buarque intitulado “O país da delicadeza perdida”. Tendo como base o show que Chico fazia na época, o filme vai mostrando em paralelo a escalada de violência e o aumento da miséria no Rio de Janeiro. Fazia parte do repertório de Chico no momento “Estação Derradeira”, aquela porrada que diz: “Rio do lado sem beira/ Cidadãos/ Inteiramente loucos/ Com carradas de razão/ À sua maneira/ De calção/ Bandeiras sem explicação/ Carreiras de paixão danada”.
Se naquele momento, a “delicadeza perdida” referia-se à criminalidade e à desigualdade, hoje ela parece um prenúncio do clima hostil que invadiu tudo no país, especialmente a discussão política. O próprio Chico tem sido uma das principais vítimas desse quadro, onde as pessoas sentem-se autorizadas a fazer a cruel, injusta e idiota mistura da discordância política com a avaliação da obra de um artista. Pela forma como Chico posiciona-se politicamente, relativiza-se a qualidade da sua obra. Diminui-se o artista para diminuir o cidadão.
Curioso é que agora, mais recentemente, Chico tenha se tornado alvo também de certa esquerda, que enxerga machismo nos versos da sua recente canção “Tua cantiga”. Precisou vir de Portugal, de João Miguel Tavares, no jornal Público, um artigo que, pela análise distante das nossas emoções políticas, resume nosso atual estágio de indigência intelectual. João Miguel Tavares observa que a tendência à literalidade e à falta de tolerância no momento aproximam no Brasil os pensamentos de esquerda e de direita. Viramos todos um bando de idiotas que se comportam como religiosos fervorosos apegados aos nossos dogmas, sem qualquer capacidade de discussão, justamente num momento em que o país precisa, anseia, de uma discussão equilibrada para sair da encalacrada em que se meteu.
“Num mundo onde as palavras estão sob uma vigilância que já não se via desde os tempos da Inquisição, não só uma simples canção ficcional passa a ser um manifesto machista, como a argumentação alegadamente ‘feminista’ e ‘empoderada’ é ridiculamente parecida com a do Catecismo da Igreja Católica”, observa João Manuel.
Por enquanto, o ódio contra Chico consubstancia-se apenas em palavras atiradas pelas redes sociais. Complicado mesmo fica quando esse ódio vira literalmente um soco certeiro, que corta o supercílio e faz correr quente o sangue sobre os olhos. Como aconteceu com a professora Marcia Friggi, em Santa Catarina. A professora foi atingida por um aluno, um rapaz de 15 anos, simplesmente porque, segundo ela, tirou dele um livro que estava debaixo da mesa e pediu que ele mantivesse o foco na aula.
Depois do soco, porém, a professora começou a ser agredida nas redes sociais por pessoas que diziam que a agressão do aluno contra ela era “merecida”. Porque ela tinha, dias antes, manifestado também nas redes sociais apoio a alguém que tinha jogado um ovo em Jair Bolsonaro.
Fecha-se dessa forma triste o ciclo da “delicadeza perdida”. Porque Chico apoia Lula e o PT, toda a sua obra merece ser diminuída e seu trabalho execrado por quem se opõe a Lula e ao PT. Porque Chico cria um personagem apaixonado que admite largar “mulher e filhos”, sua obra merece ser execrada pelas mulheres ligadas ao movimento feminista. Porque defende posições de extrema direita, não basta a Bolsonaro ser rejeitado nas urnas: ele merece ser alvo de ovos atirados contra ele. Por defender que se joguem ovos em Bolsonaro, uma professora merece levar um soco de seu aluno somente porque está procurando fazer seu trabalho como educadora.
Viramos “cidadãos inteiramente loucos, com carradas de razão”…