Em épocas de desenvolvimento “pacífico” das disputas sociais, os aparatos estatais e de produção das ideias costumam apresentar-se como “neutros”, acima dos conflitos. Entre nós, essa mistificação veio adquirindo com o tempo um palavreado todo próprio. Há as “carreiras de Estado”, as “instituições republicanas”, o “interesse nacional”, a “opinião pública”. Há as coisas que “a sociedade exige”, e também as que essa mesma “sociedade” não aceita de jeito nenhum.
Nos tempos de “paz” política e prosperidade, o encobrimento passa, em geral, despercebido. Quem controla as ferramentas de secreção das ideias hegemônicas consegue apresentar seus próprios interesses como expressão de um “interesse geral”. Mesmo assim, o rabo do gato teima em aparecer de vez em quando, e quando menos se espera. Nas nossas duas últimas consultas populares, derrotaram-se fragorosamente proposições que, pela leitura dos jornais, pareciam ter amplo consenso.
Nos períodos não tão “pacíficos”, a edificação começa a apresentar rachaduras. E quando a luta social ganha crueza a construção aproxima-se de colapsar. Algumas vezes colapsa, com estrondo ou silenciosamente. E aí os interesses exibem-se nus, sem maquiagem. São os melhores momentos da história da humanidade, pois a contradição aguda e explícita permite um aprendizado rápido e decisivo. E facilita ao ser humano tentar livrar-se da pior escravidão conhecida: a que acorrenta o espírito às ilusões.
É onde estamos. Ideias e valores aos quais se atribuía “aplicabilidade universal e neutra” viram fumaça. Os éticos de ontem são os lenientes de hoje. Os críticos da impunidade dos outros reinventam-se quando o vento muda, para defensores fanáticos do direito de defesa e críticos do “estado policial”. Num dia, o parlamento é ilegítimo, pela profusão de casos de compra de votos, troca de favores e defesa de interesses particulares. No dia seguinte, exigem que o Congresso se venda ao Executivo para aprovar as medidas pelas quais “o país clama”.
Por “país”, entendem-se as organizações da elite ou as “neutras”, as “fontes”, os consultores e articulistas que pretendem impor sua pauta manu militari na imprensa, no Legislativo e na rua, naturalmente que sem consultar ninguém. Se não der pelo Congresso, que se acione a Justiça para legislar no lugar dele. Enquanto isso, produzem discursos, artigos e manifestos para condenar que o Judiciário venezuelano tenha decidido ali subordinar e submeter o parlamento.
Num dia, são fundamentalistas da “responsabilidade fiscal”. Noutro, aceitam farras com o gasto público, renúncias a impostos, renegociações e refis em série, se for para reunir os votos que imporão aos trabalhadores só meia hora de almoço, jornada de 12 horas, férias fracionadas e aposentadoria apenas aos 65 anos, entre outras humanidades. Como se sabe, isso é essencial para sermos mais competitivos. Se não se pode desvalorizar o câmbio, pois a classe média precisa comprar em Miami, aperta-se o trabalhador.
O farsesco na política não é novidade, pelo menos desde que Karl Marx escreveu o 18 Brumário. Uma obra atual. Recorde-se o clamor, semanas atrás, pelo fim do foro por prerrogativa de função, o “foro privilegiado”. Agora que muitos atingidos nas delações empenham-se pela agenda “que vai salvar o Brasil”, o assunto deixou de ser prioridade. Assim como vai perdendo tração a cadeia após a segunda instância. Mas, claro, desde que fique em pé a Lei da Ficha Limpa. Acho que não preciso explicar a razão.
Surge até uma janela para mexer na lei sobre abuso de autoridade, pois a polícia e o Ministério Público vão chegando onde talvez não se pensasse que chegariam. E pode-se apostar na abertura de uma temporada de “autocríticas” no jornalismo, que se perguntará, compungidamente, como não aprendeu com a Escola Base, como passou três anos dando manchetes para vazamentos, sem dar-se ao trabalho de apurar se a informação tinha pé ou cabeça. Aliás a temporada já começou. Tudo previsível.
Sem surpresa, essas “autocríticas” serão engavetadas instantaneamente na próxima vez em que convier uma nova campanha para “limpar o Brasil”. Passa-se um espanador e os “critérios neutros e isentos” podem ser usados mais uma vez. Diferente de remédios e comida, mistificações não têm prazo de validade. Estão sempre disponíveis para consumo. Sempre há gente disposta a ingerir ideias estragadas. Inclusive porque, na maioria dos casos, quem ingere não percebe que fazem mal.
Mas não existe almoço grátis, e a história não anda em círculos, anda em espiral ascendente. Daí a corrosão num outro “valor”, a “credibilidade”. Que é só a capacidade de produzir e reproduzir a credulidade alheia. Gente que se fez nas “Diretas Já” em 1984, e até hoje saca dessa conta, adverte que o país “não suportaria” eleições diretas para superar a crise. Pedem “respeito à Constituição”. A mesma Carta que um dia disse só haver culpa com trânsito em julgado. É apenas um de seus itens hoje desabilitados.
Seria trágico, se não fosse só cômico. Pena não termos entre nós um Marx, para desenhar o perfil dos nossos bonapartes. Assim, com minúscula. Ou um Balzac, lembrado no pouco original título acima. Ambos produziriam literatura de primeira por aqui.
Adelaide do Julinho escreve com pseudônimo, e não é capaz nem de inventar um pseudônimo original. O texto acima é uma colaboração para Os Divergentes.