Desconstruir narrativas parece ser uma das rotinas dessa crise sem fim que se abateu sobre a República brasileira. Durante anos, três letrinhas foram repetidas à exaustão por uma das torcidas do nosso tolo futebol político: PIG. Seriam a sigla de um tal Partido da Imprensa Golpista. Na argumentação dessa torcida, a imprensa teria se associado para derrubar do poder o PT e entregá-lo de volta à velha elite política, representada especialmente pelo PMDB do presidente Michel Temer e o PSDB do senador afastado Aécio Neves (MG).
Essa narrativa tem vários problemas a essa altura, diante dos últimos acontecimentos. Exige que se leve em conta, pelo menos como hipótese, se tudo não teria passado da publicação de notícias de investigações do Ministério Público e da Justiça que atingiram o PT e seus principais líderes. Porque agora essas investigações do Ministério Público e da Justiça estão atingindo o PMDB do presidente Michel Temer e do senador afastado Aécio Neves. E continua sendo pela mesma imprensa que as pessoas vêm sendo informadas disso.
Ou seja, se houve uma associação, ela não parou onde a narrativa dizia que ela pararia. Mas aí vem o segundo problema da narrativa. A briga ferrenha dos últimos dias entre as organizações Globo e a Folha de S. Paulo em torno do noticiário das denúncias feitas pelo dono da Friboi, Joesley Batista, contra o presidente Michel Temer demole a ideia de que a imprensa funciona mesmo como um “partido”.
Primeiro, as posições editoriais dos principais veículos da imprensa brasileira acerca da responsabilidade de Temer são díspares. O Globo pediu em editorial a renúncia do presidente. O Estado de S. Paulo publicou editorial em defesa de Temer. E a Folha recomendou prudência com as denúncias.
Mas a coisa virou guerra declarada mesmo com o noticiário em torno do fato de ter havido ou não edição na gravação da conversa entre Joesley e o presidente. A notícia de que teria havido a tal edição, publicada pela Folha no sábado, foi a base do pronunciamento de Temer, no qual subiu o tom e se disse vítima de uma conspiração que tinha Joesley como protagonista. A Folha contratou Ricardo Caires dos Santos para fazer a perícia. De acordo com a reportagem, ele é perito judicial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Diz a Folha que ele identificou 50 edições na conversa, que tem “indícios claros de manipulação” e que o áudio “facilmente seria rejeitado como prova”. Registre-se que, na mesma reportagem, a Folha informa conclusões diferentes de outros peritos.
No domingo, O Globo publicou reportagem em que afirma que Ricardo Caires dos Santos não seria perito do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas apenas “um prestador de serviços eventual”. A reportagem parece fazer esforço para desqualificá-lo. Diz que ele afirma ser “profissional em transcrever áudios”. E que antes de se dedicar à conversa de Joesley com Temer apurava se “havia ou não um fantasma numa foto da internet divulgada pela atriz americana Jessica Alba”. Diz O Globo que procurou Ricardo e que ele afirmou ao jornal que não tinha encontrado 50 pontos de edição, mas 15 a 20 pontos de corte e diversos pontos de ruído. E que não era capaz de identificar exatamente os pontos de edição. Ainda: que seu objetivo era iniciar um trabalho que precisaria ser complementado por um perito. A história contada pelo Globo foi parar na Globo News e na TV Globo, no Fantástico.
Na segunda-feira (22), a Folha voltou a Ricardo Caires dos Santos, que negou ter dito ao Globo que o áudio não tinha 50 edições, mas 15 ou 20. No caso, saber se há ou não as tais edições é importante para o esclarecimento desse rolo todo. Mas aqui o centro da questão é a total falta de unidade entre os dois principais veículos de comunicação sobre o tom do noticiário sobre Michel Temer e as denúncias contra ele. Se a imprensa algum dia foi um partido, tal partido rachou completamente. O curso da vida segue divertindo-se em desconstruir narrativas…