O paroxismo da violência, mesmo diante da sombria perspectiva histórica, nos atinge como um raio, gerando uma carga de emoções difíceis de suportar. Tivemos duas dores estreitamente ligadas, na semana que passou. A primeira é de agora, será absorvida pela sociedade, mas não pelas famílias das vítimas, logo que se apague o clarão de seu relâmpago. É a brutalidade desmedida e monstruosa contra os pequeninos de Blumenau. A segunda é eterna, é a imolação de Jesus Cristo, penetrado da condição humana até ao abandono pelo Pai.
Há sessenta anos eu fui ao Rio de Janeiro para o enterro de um jovem assassinado, Odylinho, filho de Nazareth e Odylo Costa, filho, mais que amigos, irmãos de alma. Quando cheguei aos braços de Odylo, ele repetiu palavras de um conto que eu escrevera: “Deus quis, Deus fez, Deus seja louvado.” A revolta de pai, Odylo a exprimiu cumprindo a ordem que Jesus nos dá na vigília que antecede ao Sacrifício: “Amai-vos uns aos outros!”
Odylo lançou-se numa cruzada para salvar os que, como o assassino de Odylinho, estavam abandonados pela sociedade: os menores postos à margem da salvação. Poucos dias depois discursei no Parlamento levando sua mensagem: “Salvemos os outros meninos!”
Odylo lançou-se de corpo e alma na luta de uns poucos abnegados para transformar o atendimento aos menores delinquentes no SAM — a instituição que os torturava, violentava, destruía — num órgão modelar para apoiar as famílias necessitadas, possibilitando que todas as crianças pudessem ser acolhidas e um dia sonhar. Uma lei foi aprovada, mas o Ministro da Fazenda vetou a destinação de recursos que ela estabelecia. Odylo reagiu: uma “instituição mendiga” não “resgataria o inferno aqui debaixo”.
Sua dolorosa convicção de que assim se atingia as gerações futuras, pela impotência em ajudar as crianças, foi confirmada infelizmente pelos números da morte violenta no Brasil, de nossa longa guerra civil não declarada, que tem a dimensão trágica de ser a maior guerra da face da Terra.
Odylo nos dizia que era preciso a convicção da sociedade de que o problema é prioritário. E é. Mas citava Joaquim Nabuco, que, falando sobre educação, advertia a um ministro: “Sem dinheiro V. Ex.a pode fazer as reformas que quiser, mas nunca a instrução dará um passo!”
A dor abre a porta das lágrimas e dos corações, mas é necessário o esforço continuado e longo de um programa de Estado que tenha meios para agir, para desarmar, para pacificar. É uma tarefa maior. Como acabar com a fome, como criar emprego, como educar, como assegurar saúde para todos. Para isso, para cessar a guerra de todos contra todos, existe o Estado, aprendemos com Hobbes. Para isso existe o Amor, diz Deus.
Na noite que se segue à última Ceia, quando espera a hora de ser oferecido em sacrifício por nossa redenção, já preso da angústia que sofre como homem da passagem — da Páscoa — que fará e, ao mesmo tempo, da omnisciência de sua condição divina, ele insiste: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, tal como eu vos amei, para que também vós vos ameis uns aos outros. Nisto se reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros.”
Que o sacrifício dos inocentes de Blumenau, como o de Nosso Senhor, não seja em vão.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileia de Letras