Tenho insistido na ideia de que nos últimos tempos acentuou-se uma tendência histórica de regressão social. Esta não pode ser atribuída e reduzida às forças reacionárias ultraconservadoras, pois a todos envolve e responsabiliza. Liberais e esquerda fazem parte da produção do entorpecimento geral e da biruta política que embaçado o campo das alternativas. De tal maneira deles devem se libertar para reestabelecer um novo campo da política.
Bem entendido, inegáveis os avanços do Homem na Ciência e em vivências comunitárias solidárias, mas cresce a descrença generalizada nas instituições e com ela a aposta em lideranças populistas autocráticas. O contexto é a do esgotamento do capitalismo evidenciado no formato financeiro e na incapacidade da democracia liberal conter as desordens aceleradas por aquela forma de acumulação seletiva e predadora.
As derrotas de Trump (2020) e Bolsonaro (2022) são indicativas de resistência à barbárie, mas elas por si sós não garantem a continuidade em projetos democratizantes e de alguma maneira podem reforçar problemas estruturais e culturais, alimentando as forças da ultradireita. Em outras palavras, a comemoração do dia primeiro de janeiro de 2023 deve ser recatada e objeto de críticas, sob pena de Pirro morrer de vez.
A vitória de Lula implicou numa dupla bomba retardada na complementaridade entre: a) composição de uma frente tão ampla, como claramente eclética, a qual de alguma forma inviabiliza avanços nas lutas por efetividade de direitos fundamentais. Parte dos Ministros escolhidos por critérios de favores políticos, parecem aquém dos requisitos de competência e idoneidade para um governo que promete não repetir os mesmos erros do passado ; b) posturas revanchistas e provocativas nas hostes lulopetistas, sob comando de seu líder máximo, ainda no período que antecedeu à posse dia primeiro de janeiro, além de arrogantes e perigosas (para quê acirrar os ânimos de golpistas como o General Heleno e da militância mais truculenta?), reabastecem e prolongam a visão raivosa da extrema direita. A toda ação corresponde uma ação contrária.
A composição de um ministério muito mais amplo atendeu ao objetivo de satisfazer apoiadores e não apoiadores, o que gerou muito desconforto, a exemplo da União Brasil e outros pequenos partidos de aluguel. Mesmo assim a maioria para governar exige muito mais esforços no Congresso, vale dizer, barganhas num corpo a corpo com o pior do Centrão, no nível do abjeto apoio ao “orçamento oculto”.
Por um lado o bolsonarismo indica uma cisão entre entre frustrados (por traição de Bolsonaro) e obsessivos numa ainda possível intervenção militar. O certo é que politicamente Lula cooptou parte de base parlamentar de Bolsonaro, o que a médio prazo reduz cada vez mais o bolsonarismo a uma seita radicalizada em várias versões lunáticas de conspirações (eleitorais, comunistas, apocalípticas). Mas igrejinhas e grupelhos derrotados podem retornar. Hitler foi preso e voltou para construir um novo Reich de mil anos. Stálin esteve alguns anos na Sibéria e foi um dos revolucionários de 1917.
Da parte lulopetista a unidade eleitoral que permitiu a vitória somente não será rompida ao andar da carruagem do governo, se mais concessões a setores que oscilam entre interesses corporativos estaduais e venalismo explícito dos partidos ou políticos de aluguel, forem atendidas. Em todo caso, o acordão de Lula (Transformismo 2) tenderá a enfrentar muitos obstáculos para conciliar privilégios a grandes e médios estamentos e políticas integrativas prometidas aos mais vulneráveis.
Para resumir, o quadro no horizonte mais próximo não é alvissareiro para a estabilidade institucional. A direita liberal não parece ter fôlego para resgatar seus espaços sequestrados pelo oportunismo de Bolsonaro em 2018 e agora reduzidos e apropriados por setores mais extremados da extrema direita. Estes tenderão a crescer na exata medida em que: a) o governo empossado não logre sucesso nas políticas econômicas, seja pelo cenário internacional adverso, seja pela pressão por direitos fundamentais de difícil atendimento imediato; b) por força do gradual apoio dos bolsonaristas frustrados com a fuga do grande líder e inação dos generais, na medida em que as crises políticas e sociais, não sendo represadas, atinjam as ruas, como o que ocorreu em junho de 2013.
Lula está sentado num trono desconfortável. Como conciliador, não editará uma versão leninista (ação autoritária por cima) para tentar evitar os estragos e a derrota, talvez definitiva, do transformismo II. Ciente da possibilidade do impeachment caso não seja um bom garoto de recados, também é esperto para compreender que não pode ser o carrasco de si mesmo, como Alexander Kerensky tardio. Vai tentar ser o que sempre foi, um genial líder a ensaiar um casamento (cada vez mais impossível) entre os mais ricos e os mais pobres.
A única chance da revolução passiva não desembocar num golpe civil-militar está dada na tarefa hercúlea de Lula, a de se reinventar no comércio internacional de maneira a vender o Brasil como esperança em novo modo de desenvolvimento e vida, ecologicamente modelar. Uma possibilidade remota, mas possível. Marina já estava sendo rifada pela ala cínica da esquerda dirigente no diretório nacional, uma espécie de vanguarda do atraso.
Uma oportunidade histórica está dada para o Brasil, a de apontar um futuro para ele mesmo enquanto futuro para o mundo. Não se trata de uma utopia desreferencializada de ações, mas de atitudes capazes de ultrapassar e romper com um pragmatismo que vem asfixiando as esquerdas e hidratando a pior direita existente.
Edmundo Lima de Arruda Jr.