Atravessamos período incomum em nossa história. São dois os candidatos disputando a presidência da República: Luís Inácio Lula da Silva, conhecido pelos longos anos de vida sindical e política, e Jair Bolsonaro, capitão paraquedista, detentor de vários mandatos como deputado federal, presidente da República em luta pela reeleição.
Ambos os dois são (como escreveu Rui Barbosa na Réplica, Tomo II, pág. 109) personalidades públicas controversas, sobre os quais recaem pesadas acusações. Injúrias que em passado não distante provocariam reações violentas, alimentadas pelo desejo de lavar a honra (se preciso com sangue), são escritas, faladas, ouvidas e aceitas em silêncio.
Sou inimigo da violência. Entendo, porém, que dizer a alguém que é corrupto, ladrão, apropriador de dinheiro público, desviador de recursos do Tesouro, de empresa estatal, de sociedade de economia mista, de fundo de pensão, sem pronta e direta resposta, é porque aceitou as palavras injuriosas e difamantes.
A política praticada no Brasil não é civilizada, no sentido dado à expressão pelo filósofo espanhol Ortega Y Gasset (1883-1955). Escreveu o autor de Rebelião das Massas, que civilização resulta da combinação de fatores vários, como cortesia, relações pessoais, justiça, razão. A civilização tornou possível a cidade, a comunidade, a convivência. Ainda segundo Ortega y Gasset “O liberalismo (…) é a suprema generosidade, é o direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o mais nobre grito que soou no planeta” (Livro Ibero-Americano, RJ, 1959, pág. 120).
Creio que desaprendemos a ser liberais e civilizados, sobretudo no que diz respeito à aceitação de opiniões divergentes. O adversário político é desprezível, o inimigo para ser aniquilado.
Veja-se o que disse o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, a propósito dos 12 anos de governo do Partido Trabalhadores: “Nunca na história deste país se errou tanto, nem se roubou tanto em nome de uma causa” (Veja, 27/5/2015, pág. 38).
A edição de sábado, 15/10, de O Estado publica artigo do biólogo Fernando Reinach, cujo título diz: “Bolsonaro quer destruir o nosso futuro”. O articulista compara os dois candidatos. Sobre Lula escreve: “Foi no governo Lula que ocorreram os maiores casos de corrupção organizada na história do Brasil. Primeiro foi o mensalão onde o governo pagava uma mesada para que o Congresso aprovasse os projetos do Executivo. Um nojo. Depois vieram os casos de corrupção descobertos na Lava Jato. Na Petrobrás o governo nomeou executivos cuja função era desviar dinheiro. Essas pessoas foram descobertas, confessaram, delataram outras, devolveram parte do dinheiro roubado, e foram presas. Além disso, prosperou a relação espúria do governo com empreiteiras e outras grandes empresas”. Interrompo a transcrição por falta de espaço. Cito, porém, a observação sobre Lula: “Para mim é impossível acreditar que Lula não estava a par do que ocorria e não deu seu aval a toda roubalheira” (pág. A29).
A respeito de Bolsonaro, Fernando Reinach faz profecias sombrias. Lança sobre ele a acusação de que “inúmeras vezes elogiou a ditadura militar e os mais abjetos personagens da época, deseja a volta desse período sombrio da nossa história. Assim como outros líderes autoritários de esquerda e direita, Bolsonaro tem como agenda única (sic) minar aos poucos as instituições democráticas para se tornar um ditador.”
O historiador registra fatos. O profeta trata de adivinhá-los. O ofício de profeta é perigoso, escreveu Norberto Bobbio (O Futuro da Democracia, Paz e Terra, RJ, 1986, pág. 17). Não sendo lulista ou bolsonarista, observo que a democracia brasileira, desde a promulgação da Lei Fundamental em 5/10/1988, enfrentou severos testes, todos superados. No impedimento de Fernando Collor de Mello em 1999, e na deposição de Dilma Roussef em 2017, não houve golpe. O processo tramitou pela Câmara dos Deputados e Senado, de conformidade com os dispositivos da Constituição e do Código de Processo Penal.
Em recente artigo publicado no jornal O Estado, com o título O Momento Passou (16/8, pág. A6), procurei demonstrar a inexistência de condições objetivas para golpe de estado, como tivemos em 1930 e 1964. A democracia está consolidada. Não há “cheiro de golpe no ar”, como apregoa Fernando Reinach.
Devemos exorcizar maus espíritos. Seja quem for o vencedor, Jair Bolsonaro ou Lula, tomará posse no dia 1º de janeiro de 2023 de acordo com a Constituição, para governar quatro anos. Exceto se vier a incorrer em crime de responsabilidade, conforme prescrevem os artigos 85 e 86.
As instituições operam normalmente. Legislativo, Executivo, Judiciário, não são imunes a críticas, mesmo quando acaloradas. Confundir críticas com projeto de golpe parece-me equivocado e não contribuí para a saúde do regime democrático.
– Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
Autor de “Mensagem ao Jovem Advogado”.