Há quase um século o escritor Mário de Andrade se debruçava sobre uma recorrente indagação antropológica cuja resposta ainda é objeto de muita controvérsia. “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter” é uma obra prima literária do modernismo brasileiro. A partir de uma densa pesquisa sobre a cultura popular, Mário de Andrade apresentou ao Brasil a síntese de um anti-herói cujos principais atributos eram pejorativos: a preguiça, o egoísmo, a vaidade e a malícia.
Macunaíma, “filho do medo e da morte”, imortalizado no cinema pelo ator Grande Otelo, é um personagem mau caráter, mentiroso, trapaceiro e traidor. Há cem anos remanesce o questionamento sobre a identidade brasileira, quase restrito à academia, em que pese a abordagem satírica de Mário de Andrade no livro. Macunaíma é a síntese da alma do povo brasileiro? As expressões sínteses e mais conhecidas do livro são: “ah que preguiça” e “pouca saúde muitas saúvas, os males do Brasil são”. Certamente, a grande maioria do povo brasileiro não incorporou essa índole velhaca do vagamundo Macunaíma.
Não se pode dizer o mesmo do capitão Bolsonaro, intoxicado pelos predicados mais negativos narrados por Mário de Andrade. Além de mentiroso compulsivo, de cavilosidade cínica, entre outras máculas, Bolsonaro é a expressão máxima do ócio improdutivo, da vadiagem esbanjadora com o dinheiro alheio e o responsável pela multiplicação daninha das saúvas que estão arruinando o Brasil, as instituições e a democracia. Três acadêmicos (Dalson Figueiredo, Lucas Silva e Juliano Domingues) fizeram o estudo “Deixa o Homem Trabalhar?”. Eles identificaram que, entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2022, Jair Bolsonaro trabalhou, em média, 4,8 horas por dia. A quantidade média de sua carga de trabalho diminuiu nos últimos tempos: passou de 5,6 horas em 2019 para só 3,6 horas este ano, considerando a sua agenda oficial. A vadiagem ainda é contravenção penal. O capitão não trabalha, apenas se diverte como as cigarras e é nocivo como as saúvas. Que preguiça.
A rotina extenuante, invocada com frequência pelo mandrião e desmentida pelo estudo, e a prosperidade do Brasil explicam as frequências de férias nababescas, passeios de motocicletas pagos com recursos dos impostos e giros aleatórios por cidades brasileiras fazendo campanhas ilegais para reeleição. Nas férias de 2022 foram torrados pelo menos R$ 900 mil dos cofres públicos com as despesas do presidente e de sua comitiva enquanto fortes chuvas atingiam a Bahia e Minas Gerais, deixando vários mortos diante da indiferença desumana de quem tinha o dever legal de agir.
Entre 18 de dezembro de 2020 e 5 de janeiro de 2021, a vagabundagem de Bolsonaro custou R$ 2,4 milhões. Destes, quase R$ 1,2 milhões foram gastos com o cartão corporativo do governo federal, R$ 1,05 milhão bancaram combustível e manutenção de aeronaves e R$ 202 mil pagaram as diárias da equipe da segurança. A vadiagem foi no Guarujá e São Francisco do Sul. Perguntado sobre os gastos excessivos debochou mais uma vez: “Vai ter mais férias para ser gasto; fiquem tranquilos.” A mamata é uma saúva corriqueira no murundum bolsonarista.
Na Saúde as saúvas de Bolsonaro são responsáveis pela morte de mais de 665 mil brasileiros durante a pandemia, um dos piores desempenhos mundiais. Gabinetes paralelos, obscurantismo medieval, corrupção e boicote à ciência potencializaram as infecções e impactaram o número de mortes. Enquanto desprezava a oferta de mais de 120 milhões de doses de imunizantes de 2 laboratórios o capitão prescrevia ilegalmente remédios inúteis, como a cloroquina. Além disso convocou e participou de aglomerações golpistas, sabotou o uso de máscaras, defendeu a imunidade de rebanho, deixou os amazonenses morrerem asfixiados e estimulou protocolos mortais como o da Prevent-Sênior em São Paulo. As propinas nas vacinas foram escancaradas.
Na Covaxin, pedida por ele, o sobrepreço foi de 50% para enriquecer um amigo do líder do governo. Na AstraZeneca a propina sugerida foi de US$ 1 por dose. O próprio Pazuello aparece em um vídeo negociando uma vacina superfaturada. Apesar do genocídio não houve nenhum gesto, lamento, solidariedade, compaixão ou empatia com as famílias das vítimas da incúria ao longo de dois anos de pandemia. O ódio, propugnado por ele e suas tanajuras, é outra saúva perigosa para a civilização.
As saúvas mais nocivas à vida e às instituições são as milícias que se desinibiram no formigueiro bolsonarista. Ele e o filho 01 já defenderam a legalização de polícias paraestatais, exatamente como aconteceu na Alemanha nazista. Adriano da Nóbrega, chefe do temido escritório do crime emplacou a mãe e a ex-esposa no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, o berço das ‘rachadinhas’. Nóbrega, arquivo já “cancelado” na Bahia, também foi condecorado na cadeia com a medalha de Tiradentes entregue por Flávio Bolsonaro e ainda era íntimo de Fabrício Queiroz, o formigão das rachadinhas.
Ronnie Lessa, outro expoente da milícia carioca preso pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro, é vizinho dos Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra. Élcio Queiroz, outro ex-PM, foi o condutor do carro que transportava Lessa e foi acusado de auxiliá-lo na execução. Élcio publicou uma imagem, lado a lado com Bolsonaro, em 4 de outubro de 2018, às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial. O deputado Daniel Silveira, o mesmo que quebrou a placa em homenagem a Marielle Franco no Rio de Janeiro, foi condenado a mais de 8 anos pelo STF e imediatamente indultado por Jair Bolsonaro, em mais uma afronta ao Judiciário. Festa no sauveiro.
Existem ainda as saúvas verde-oliva trazendo novos malefícios à Nação. As Forças Armadas passam por um processo sem precedentes de humilhação e não reagem. As 6 mil fardas com alguma boquinha no governo se curvam vergonhosamente ao capitão que foi expulso do Exército por ameaças terroristas. Cada vez mais a imagem das Forças Armadas está associada a desvios, corrupção, nepotismo, tráfico de influência, incompetência, covardia e golpismo.
Apenas em gastos supérfluos em 2020, foram mascados R$ 2,2 milhões em chicletes, torrados R$ 32 milhões com pizzas e refrigerantes e entornados R$ 15,6 milhões em leite condensado para as tropas, além de cerveja, salmão e outros quitutes para o alto comando. Tudo isso somado às 35 mil doses de viagra (superfaturadas em mais de 500%) e 60 próteses penianas, cabides de emprego para parentes, pressões ilegítimas sobre o STF, tráfico de cocaína no avião presidencial, salários acima do teto constitucional, vacinas escondidas, notas golpistas e até a inadmissível atuação político partidária. Símbolo maior da incompetência é Eduardo Pazuello no comando da Saúde durante a pandemia. Um desastre generalizado. Sabotagem à ciência, atrasos fatais na compra de vacinas, corrupção, acúmulo de cloroquina, desvios e mentiras seriadas. A mesma saúva da corrupção também já foi identificada no MEC, com pastores traficando prestígio e cobrando propinas em barras de ouro. A incompetência, a preguiça e rapina governam o país.
Uma das mais devastadoras saúvas do bolsonarismo é a mentira. Ela é um método de desconexão da verdade para fidelizar a base desmiolada e foi copiada dos expedientes de Adolf Hitler/Joseph Goebbels. O estudo da agência “Aos Fatos”, quantificou a delinquência de Bolsonaro. Em 2021 aumentou muito a média diária de declarações falsas ou distorcidas do capitão. Foram 6,9 falas enganosas por dia. A média ultrapassa o acumulado de inverdades ditas por ele desde a posse, de 4,3/dia. Em 2019, 606 declarações foram catalogadas como inverídicas. Uma média diária de 1,6. Em 2020 foram 1.592 alegações desvirtuadas, ou 4,36 rotineiramente. Já em 2021, nada menos do que 2.516 falas continham informações improcedentes. Apenas sobre a pandemia, o presidente deu 1.278 declarações mentirosas em 2021. O maior embuste a ser usado na campanha de 2022 é que o STF o impediu de trabalhar. Além de mentira, cinismo. As declarações falaciosas sobre os imunizantes também ganharam mais espaço no universo paralelo de Bolsonaro: foram 357 afirmações falsas e distorcidas sobre as vacinas. Sobre economia ele quintuplicou em 2021 a quantidade de declarações irreais. O que falta em trabalho sobra em mentiras.
Outra saúva destruidora das democracias é o secretismo. Tudo que possa representar desconforto ou revelações mais graves é classificado como segredo centenário. Os trogloditas são devotos da escuridão, das trevas e do furtivo, como as câmaras subterrâneas dos formigueiros. Têm aversão à luz, ao conhecimento, às liberdades e ao iluminismo. Já em 2019, Bolsonaro estendeu a lona da escuridão, nublando as regras da regulamentação da Lei de Acesso à Informação. Um ato cinzento ofuscou a transparência e banalizou o número de pessoas com poder decisório para chancelar o sigilo de dados públicos. O Decreto 9.690/2019 aumentou o número de pessoas que, discricionariamente, atribuem confidencialidade aos dados antes disponibilizados pela Lei de Acesso à Informação, embaçando a transparência da norma. A classificação, de reservado a ultrassecreto, virou uma farra da escuridão e pode ser sacramentada por servidores com cargos comissionados DAS-6. Antes, a prerrogativa era do presidente, do vice-presidente, dos ministros e dos comandantes das Forças Armadas.
O capitão tentou eclipsar a Lei de Acesso à Informação. O ministro do STF, Alexandre de Moraes, cancelou em março de 2020 o trecho da MP 928/20 que suspendia os prazos para resposta dos pedidos da LAI. A medida frustrada pretendia sombrear os direitos constitucionais à informação, à transparência e à publicidade. Frustrado com o malogro das ofensivas, o governo passou a adotar os procedimentos de ocultação como norma da administração. Assim que Eduardo Pazuello assumiu a Pasta da Saúde, no auge da pandemia, abortou as entrevistas diárias e deixou de divulgar o balanço diário de infectados e mortes. O boicote estatal à transparência foi substituído por um consórcio de veículos de imprensa que passou a divulgar os dados sobre a Covid-19. Pouco tempo depois o STF também determinou que Pazuello retomasse a divulgação pública. Intencionalmente os números eram retardados para evitar a divulgação no telejornal de maior audiência. A aversão à transparência e à verdade fala por si.
O Ministério da Saúde também colocou sob segredo os expedientes que tratam da aquisição de vacinas da Covaxin, denunciada pela CPI por mais de 20 irregularidades, entre elas corrupção, superfaturamento, pagamentos antecipados e falsificação de documentos. Uma parte dos documentos foi entregue à comissão parlamentar, porém a pasta decidiu restringir o acesso público em resposta a um pedido feito por veículos de comunicação através da LAI. Em 6/8/2021, o Ministério da Saúde externou que o acesso aos documentos se encontrava “suspenso e restrito no momento”. Todos os documentos oficiais enviados à CPI pelo governo levavam o carimbo de sigiloso. A Comissão reclassificou boa parte deles. Esconder os papéis não disfarçou os odores repulsivos da malversação. O afã de cobrir rastros acaba revelando o que se quer camuflar.
Carlos Bolsonaro também foi iluminado participando de uma reunião dentro do Palácio do Planalto negociando vacinas da Pfizer. Ninguém explica a participação do vereador na negociação dos imunizantes. Depois do escândalo, revelado durante o depoimento do CEO da Pfizer na CPI da Pandemia, Carlos Murillo, o governo recorreu à velha tática de eclipsar. Impôs um sigilo secular sobre informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome de Carlos e Eduardo Bolsonaro. Além do século de sigilo, imposto pelo Exército brasileiro ao caso de indisciplina do general Eduardo Pazzuello, que participou de um comício com Bolsonaro, uma série de outras medidas no mesmo sentido têm sido adotadas. Todos os seres pantanosos têm medo da luz do sol.
A Saúde determinou o sigilo de 10 anos sobre os documentos do segundo contrato de compra da vacina contra a Covid-19 da Pfizer. Os ogros das catacumbas também classificaram como reservados ou secretos os telegramas diplomáticos entre Brasília e Israel sobre a vexatória viagem para conhecer o spray nasal contra a Covid-19. Serão 15 anos de escuridão. Participaram da excursão os deputados Eduardo Bolsonaro, Hélio Lopes, o assessor Filipe Martins, e o ex-secretário de Comunicações, Fábio Wajngarten. Em janeiro de 2021, o governo negou o pedido de acesso à carteira de vacinação do capitão Bolsonaro feito por meio da Lei de Acesso à Informação. Na ocasião, segundo a própria assessoria da presidência, um decreto de sigilo de 100 anos foi feito porque os dados “dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem” do presidente. Até o orçamento público virou secreto, pulverizando os mandamentos da publicidade, impessoalidade e economicidade da Constituição. A escuridão é uma saúva aniquiladora.
O resultado devastador da ação daninha das saúvas bolsonaristas é a expansão da miséria – visível nas ruas e comprovada nas estatísticas-, a explosão da inflação, o desemprego superlativo, o estouro dos juros e o endividamento. O Brasil voltou ao mapa da fome. A insegurança alimentar quase dobrou, segundo FAO, ONU e OMS. Para se ter noção da dramaticidade, entre 2018 e 2020, a fome atingiu 7,5 milhões de brasileiros. Já entre 2014 e 2016, esse número era bem menor: 3,9 milhões. Agora são 49,6 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. Número maior que a população da Espanha. O desemprego está em níveis aterradores e 14 milhões de pais e mães de família estão sem trabalho, o dobro da população do Paraguai. O capitão não fala de trabalho, saúde, educação, programas sociais, inclusão… nada disso. Ataca os poderes, concede indultos aos seus delinquentes sentenciados – suas saúvas operárias – e prega armar a sociedade, uma agenda do confronto e da morte há 3 anos. As saúvas de Bolsonaro também aumentaram a devastação de florestas e nos tornaram um pária mundial, excluídos dos grandes debates globais.
A morte, a mamata, os maus militares, a miséria, a corrupção, o secretismo, a vadiagem e o ódio são as novas e perniciosas saúvas brasileiras. “Se o Brasil não acabar com a saúva, a saúva acaba com o Brasil”. A frase, do pesquisador francês Yves Saint-Hilaire, dita no início do século passado, pode até ser um exagero, mas a verdade é que, até hoje, as saúvas são verdadeiras pragas e as formigas cortadeiras do bolsonarismo ameaçam toda a lavoura democrática. Elas nada produzem, vivem da rapinagem do trabalho alheio, só agem na calada de noite e são extremamente nocivas. É desalentador que, no ano que se celebra o centenário da semana de arte moderna, o Brasil se veja constrangido a rebater o atraso e o retrocesso. Pulverizar as saúvas do bolsonarismo no voto, com o efeito mortal dos inseticidas, é um trabalho de formiguinha que a democracia e o futuro impõem a todos aqueles que, verdadeiramente, se preocupam com o Brasil.