“Pagarei assim que puder”. A inqualificável frase foi dita pelo Ministro da Economia Paulo Guedes na semana que passou, para avisar a milhares de credores do Tesouro Nacional que serão vítimas de calote de créditos em precatórios.
Não se trata de calote simples cometido por freguês de padaria, do bar ou armazém. O caso assume excepcional gravidade porque a anunciada fraude viola disposições da Constituição de 1988, destinadas a proteger credores do governo.
A breve e objetiva redação original, do artigo 100 da Lei Fundamental, foi alterada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009, que lhe acrescentou diversos parágrafos. Preservou, entretanto, o parágrafo primeiro, renumerado como parágrafo quinto, cuja redação diz: “É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento dos seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão os seus valores atualizados monetariamente”.
Se é obrigatória, significa que não pode deixar de ser feita. São sentenças judiciais civis, comerciais, trabalhistas, transitadas em julgado e liquidadas, que condenam entidades de direito público a indenizarem prejuízos causados a particulares.
Houvesse boa-fé, bastaria isso. Como é sabido, o credor da Fazenda Nacional, ou das Fazendas Estaduais, Municipais e Distrital, não executa a dívida valendo-se de instrumento coercitivo como a penhora on line ou eletrônica. Tendo, embora, sentença definitiva nas mãos, suplica ao devedor que lhe pague. Para tanto, segundo disposição expressa da Lei Fundamental, habilitará o precatório até o dia 1º de julho, passando a aguardar “a inclusão no orçamento anual das entidades de direito público de verba necessária ao pagamento dos seus débitos” (Art. 100, § 6º).
No que concerne ao pagamento de dívidas públicas, a Constituição se revela autêntico reino da fantasia. Daí a razão do parágrafo 13, do mesmo artigo 100, que permite ao credor desenganado “ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º”. A ceder, porém, com deságio de 60%, 70%, 80%, do valor do débito, de conformidade com a necessidade e a urgência. É a consagração da imoralidade incluída na Lei Fundamental. O precatório deixa de ser documento de dívida líquida e certa do Governo, para se converter em folha banal de papel, cujo preço é estabelecido pelo adquirente oportunista.
A pessoa que tem precatório para receber sabe que está desamparada. A frase do Ministro Paulo Guedes liquidou as esperanças daqueles que tiveram terreno ou casa desapropriados, e ganharam na Justiça o direito à correta indenização. A compra de precatórios, chancelada pela Constituição, se transformou em atividade tão lucrativa quanto o tráfico de drogas, sem padecer de riscos.
Como alerta o jornalista Celso Ming, na coluna semanal do Estadão (5/8, pág. B2), o calote e a pedalada nos precatórios serão impostos unilateralmente, mediante Emenda à Constituição. Segundo a PEC, créditos de até R$ 66 mil reais serão pagos de imediato. Não é verdade. Débitos de menor valor de natureza alimentícia estão protegidos, deveriam ser pagos com preferência sobre os demais, o que jamais acontece (Art. 100, §§ 1º, 2º).
Chegamos a tal estado de desilusão e decadência que o Ministro da Economia assume, em entrevista aos jornais, que o governo federal é caloteiro. Há dinheiro para o Fundo Partidário e mordomias. Não há dinheiro para a viúva ou o aposentado, que perderam a casa e as esperanças de, em vida, receber a indenização.
O que pensa o presidente Jair Bolsonaro? Concorda com o calote anunciado pelo Dr. Paulo Guedes?
Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do TST