Mais uma vez, esta semana, o Brasil proibiu a entrada de estrangeiros por via terrestre ou aquática. Curiosamente não proibiu o acesso por via aérea. Essa tentativa de impor barreiras físicas faz parte da rotina em todo o mundo desde o desenrolar da pandemia de Covid-19.
Não é a primeira vez que se impõem restrições em razão de uma doença. Já o Levítico mandava isolar os leprosos. Avicena, o grande sábio que revelou Aristóteles para o Ocidente, recomendava a separação dos doentes com doenças transmissíveis. E na transição entre Idade Média e Renascimento surgiu na língua vêneta a palavra quarentena, que, escrita como em português, marcava os quarenta dias de isolamento necessários a quem quisesse entrar na Sereníssima República, tentando assim barrar as pragas de peste.
A partir daí o sistema se generalizou, sobretudo nas fronteiras marítimas, sem evitar completamente os surtos — na gripe espanhola morreram 50 milhões de pessoas. Com a explosão das viagens aéreas as coisas se complicaram, porque a doença dá a volta ao mundo antes de ser identificada e cria focos de contágio aqui, ali e acolá. Foram geradas muitas convenções multilaterais, até se chegar à adoção de regras internacionais — os Princípios de Siracusa — pela ONU.
Com a Covid foi, e é, comum a restrição ao fluxo de pessoas. Hoje mesmo nós, brasileiros, não podemos entrar em muitos países, pelo péssimo juízo que se faz de nossos controles e de nosso combate à epidemia.
A falta de uniformidade nas medidas de isolamento mostra dois grandes problemas: o primeiro, o do progressivo enfraquecimento do sistema das Nações Unidas, devido em parte ao boicote das três maiores potências no Conselho de Segurança. Esse é um problema que a humanidade tem que resolver, pois precisamos de mais autoridade coletiva, não de menos, sobretudo para agirmos contra as desigualdades.
O segundo aspecto é a erosão sistemática do Estado democrático que, sob o pretexto de criar um Estado mínimo, tem sido levado rapidamente para o autoritarismo e o populismo que tanto mal causam, como com Hitler, Mussolini, Stalin, Hirohito e tantos outros monstros. Mesmo os regimes em que a democracia resiste sofrem enorme perda em sua capacidade de agir, com governos desprestigiados. Não podemos ignorar a relação entre a crise do Estado e os danos provocados pela doença. Assim aconteceu com a Itália e a Espanha, que não têm conseguido estabilidade para seus governos; com a Inglaterra, onde o Brexit dividiu a população e assumiu a figura exótica de Johnson; com a França, onde Macron não consegue convencer; com os Estados Unidos, no tempo do inqualificável Trump; e em vários países da América Latina — sem falar dos lugares onde só há um fio de democracia, como a Hungria.
Precisamos resistir a esses ataques e restaurar as bases do Estado democrático e da solidariedade internacional.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras. (Artigo publicado também no jornal O Estado do Maranhão)