A obtusidade bolsonarista mergulhou o Brasil em um abismo sepulcral da realidade paralela. Há expedientes reincidentes na tentativa de falsear ou desconectar parte da sociedade da verdade: gastos maciços em propaganda irreais, redes orgânicas de disseminação de fake news, a reiteração da mentira com método de gerar entropias e a fabulação de mundos inexistentes com o propósito de maquinar um universo invisível e intangível. O messianismo, de índole fundamentalista, se apossou de uma mente obscurantista, retrógrada e de baixíssima capacidade cognitiva.
Entre pulverizar sua rudimentar formação militar e intelectual ou tentar compreender a complexidade do mundo e da governança do Estado, opta pelas escolhas simplistas do negacionismo, que não lhe exigem esforços mentais.
Na mais aterradora pandemia mundial, responsável por um morticínio superlativo no Brasil, a atual gestão baseou suas formulações de políticas públicas a partir de orientações do gabinete paralelo. Ele era constituído por médicos obscurantistas – sem investiduras públicas formais – ou conselheiros informais, desqualificados, que guiaram o governo na contramão das recomendações científicas. O chamado gabinete da escuridão estimulava aglomerações, advogava a fictícia imunidade de rebanho, prescrevia cloroquina e chegou ao limite de propor a fraude da bula do medicamento para recomendá-lo contra Covid-19. Todos os rastros mortais do grupo estão comprovados em declarações, documentos, vídeos e testemunhos.
Autodenominados de ‘médicos pela vida’, a falange criminosa bombardeava as vacinas contra o coronavírus em reuniões em Brasília. O resultado foi um boicote deliberado e prolongado do capitão na aquisição dos imunizantes. O Instituto Butantan, um dos mais respeitados no mundo, fez reiteradas ofertas de vacinas entre julho de 2020 e janeiro de 2021. O desprezo, desautorizações públicas e xenofobia do chefe de Estado contra a aquisição da Coronavac marcaram as negociações.
A mesma resistência nas relações com outro laboratório, a Pfizer. Entre as primeiras ofertas, de agosto do ano passado e março de 2021, foram 83 tentativas de interação da empresa ignoradas ou desprezadas pelas autoridades brasileiras. O número 1 da pasta, Eduardo Pazuello, declarou cinicamente que não era papel dele se reunir com representantes das empresas. O número 2 por lá arguiu até um vírus de computador que o impediu de abrir as propostas que salvariam vidas.
Na perseguição promovida pelo Estado paralelo, invisível ao controle público e à fiscalização institucional, a atual gestão inovou ao privatizar o dinheiro público. Inventou-se o orçamento paralelo para remunerar financeiramente a docilidade de aliados no Congresso Nacional. O governo criou uma contabilidade fora do radar do Tribunal de Contas da União de perto de R$ 3 bilhões, alheio ao teto de gastos, para comprar deputados. Uma espécie de ‘biscoito’ para controlar o apetite. Segundo as denúncias, os ofícios dos parlamentares eram encaminhados, principalmente ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Nos documentos os aliados indicavam à pasta onde gostariam e alocar os valores em montantes muito superiores aos 8 milhões que têm direito anualmente em emendas da vida real. Há entre eles uma casta privilegiada que comandou a farra da distribuição do dinheiro do contribuinte.
Fustigado pela CPI e amedrontado com o cerco se fechando, o capitão Bolsonaro, viciado em mentiras e propagador de mundos ficcionais, inventou um TCU paralelo também. Ele garantiu aos que focinham rotineiramente no cercadinho da estupidez no Alvorada haver um relatório do Tribunal de Contas da União revelando que 50% das mortes registradas por Covid-19 no Brasil foram por outras causas que não o vírus. “Não é meu. É do tal do TCU, questionando o número de óbitos no ano passado por covid. E ali, o relatório final, não é conclusivo, mas disse que em torno de 50% dos óbitos por covid no ano passado não foram por covid, segundo o TCU”, apontou fraudulentamente. Mais uma vez culpou a imprensa por incomodá-lo com a realidade, oposta aos seus delírios.
“Esse relatório saiu há alguns dias. Logicamente que a imprensa não vai divulgar. Já passei para três jornalistas com quem eu converso e devo divulgar hoje à tarde. E como é do TCU, ninguém queira me criticar por causa disso. Isso aí muita gente suspeitava. Muitos vídeos que vocês viram de WhatsApp, etc, de pessoas reclamando do que o que o ente querido não faleceu daquilo. Está muito bem fundamentado, todo mundo vai entender, só jornalista não vai entender”, escarneceu mantendo seu alvo predileto na luta contra a verdade, a imprensa, mãe de todos os fracassos bolsonaristas.
O TCU desmentiu instantaneamente a fraude presidencial e esclareceu inexistir informações que apontem que ‘em torno de 50% dos óbitos por covid no ano passado não foram por covid’, conforme a fantasia irresponsável do capitão que se viu constrangido a se retratar: “Vou só explicar uma coisa aqui, a questão do equívoco, eu e o TCU, de ontem. O TCU está certo, eu errei quando falei tabela’, disse o presidente. “A tabela quem fez foi eu, não foi o TCU. O TCU não errou em falar que a tabela não é deles. A imprensa usa para falar que fui desmentido, o tempo todo é assim”. O mentor da farsa do estudo paralelo, Alexandre Figueiredo Marques foi afastado, responderá a um inquérito administrativo e foi convocado pela CPI.
Alexandre confessou que foi o pai dele o responsável por repassar o documento ‘paralelo’ a Bolsonaro. O dado está junto à confissão do servidor enviada à corregedoria do TCU. O pai do servidor foi presenteado com um cargo na Petrobras durante a atual gestão e já se reuniu ao menos três vezes com Bolsonaro. O nome dele é Ricardo Silva Marques, coronel do Exército, nomeado gerente-executivo de Inteligência e Segurança Corporativa da Petrobras em 2019. Alexandre Figueiredo também é amigo dos filhos de Bolsonaro e do presidente do BNDEs, Gustavo Montezano. Em 2019, o servidor tentou assumir uma diretoria no banco na área de ‘compliance’, mas teve os planos barrados pelo então presidente do TCU na época, José Mucio Monteiro.
O Exército Brasileiro é outra vítima do estupro do Estado paralelo. Ele o ridiculariza ao chamá-lo impropriamente de “meu Exército” porque despreza a separação do público e privado. O capitão humilhou o Alto Comando ao abortar a punição de Eduardo Pazuello por participar de um ato político no Rio de Janeiro. A baderna e a indisciplina ficaram liberadas. As mesmas que ocasionaram a expulsão de Bolsonaro do Exército. Pazuello é a nódoa mais vergonhosa do Exército Brasileiro. Além de incompetente, de insuflar a anarquia, Pazuello mentiu despudoramente quando depôs à CPI. Desmascarado pela verdade, maquinou expressões ininteligíveis como “posição de internet”. Teve os sigilos quebrados pela Comissão Parlamentar de Inquérito e anda assombrado com os desdobramentos da investigação. Ainda hoje esconde sua parvoíce no biombo do Estado e numa farda que não parece ostentar.
À exemplo dos nazistas que institucionalizaram organizações paramilitares, como a SS, SA e a Gestapo, a quadrilha em torno de Jair Bolsonaro ambiciona estruturar uma polícia paralela, legalizando a face mais abominável do submundo do crime carioca, as milícias que matam e extorquem. As vinculações com a delinquência do Rio de Janeiro são indesmentíveis e as digitais milicianas mancham alguns dos mandatos da família. Condecorações a Adriano da Nóbrega, emprego para familiares dele, a ciranda financeira com Fabrício Queiroz, os vizinhos envolvidos com a execução de Marielle Franco são as conexões visíveis. Jair e Flávio já defenderam publicamente a legalização das milícias.
A milícia carioca vende casas e apartamentos ilegais, despeja moradores que não pagam a taxa de segurança, revende os imóveis dos desalojados e constrói clandestinamente em vários municípios do rio de Janeiro. Opera em diversos locais como Guaratiba, Itaboraí, Magé e Rio das Pedras, onde 2 prédios desabaram. Adriano da Nóbrega, arquivo queimado na Bahia, era uma sumidade da milícia em Rio das Pedras e comandava o “escritório do crime. Foi homenageado na prisão por Flávio Bolsonaro com a medalha de Tiradentes da Alerj e elogiado por Jair Bolsonaro, como “brilhante oficial” quatro dias depois de condenado por homicídio.
Antes de morrer, o ex-ministro Gustavo Bebbiano, braço direito de Bolsonaro na campanha mencionou a “Abin paralela” e atribuiu sua concepção ao vereador Carlos Bolsonaro. Na reunião de 22/4/2020, o próprio capitão confessou ter um serviço paralelo de informações. “O meu particular funciona. Os ofi… que temos oficialmente, desinforma. E voltando ao … tema prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações”. A crise com Sérgio Moro pelo controle da PF as operações sistemáticas da Federal contra inimigos do governo aumentaram a suspeição sobre ações extraoficiais de perseguição política a adversários.
Mais recentemente a Abin, através de um decreto presidencial, queria ter acesso a dados sigilosos dos cidadãos para bisbilhotar. A ministra Carmen Lúcia do STF disse que arapongagem era crime. A Agência Brasileira de Inteligência, do amigo Alexandre Ramagem, tinha sido autorizada a fazer devassas. O decreto aumentava o número de cargos, permitia o treinamento/recrutamento de indicados políticos e escancarou o acesso injustificado de arapongas para xeretar informações sigilosas dos cidadãos. Entre eles dados fiscais, bancários, telefônicos, inquéritos policiais e também relatórios do COAF. Por 9 a1 o STF barrou a nova arapuca arbitrária. O recado de que arapongagem é crime acabou antecipando o julgamento de outro caso de polícias políticas paralelas e ilegais no Ministério da Justiça.
Pelo mesmo placar, 9 a 1, o STF também repreendeu o Ministério da Justiça, na gestão de André Mendonça, na produção de dossiês contra adversários, denominados de “antifascistas”. Inspirado nos repulsivos métodos do SNI, invadiu-se, clandestinamente, vidas privadas com expedientes da ditadura. O serviço secreto paralelo foi armado pela Secretaria de Operações Integradas do MJ e gerou um dossiê com 400 páginas de bisbilhotice. O titular do DOPs ilegal foi sacrificado, mas até hoje na se sabe quem encomendou a espreita criminosa. A ministra Carmen Lúcia fulminou a KGB: “A gravidade do quadro descrito, que – a se comprovar verdadeiro – escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República”.
Foras da lei, como mafiosos, contrabandistas, golpistas, traficantes e milícias, desprezam as regras do Estado e se homiziam em estruturas paraestatais. A insurreição cotidiana contra os órgãos oficiais e a obsessão em organizar mecanismos extraoficiais, clandestinos, invisíveis ao controle do Estado, expressa a índole ditatorial de Jair Bolsonaro e seu desdém pela democracia.
Desde 2020 ensaia sua noite dos cristais. Já fez ameaças explícitas em conspirações golpistas para fechar os outros poderes. Agora aposta na derrota eleitoral para ativar a quartelada. Assim como seu anacrônico preceptor Donald Trump acabará falando sozinho. O derretimento nas intenções de votos, perda de aderência nas redes sociais, o fiasco da gestão, a corrupção, a incompetência generalizada, o desemprego, a fome, a inflação e a CPI desgastarão Bolsonaro e o devolverão à uma amarga realidade, que hoje se esforça em adulterar.