Não é objetivo, neste texto, traçar semelhanças ou desigualdades entre Brasil e Chile. Como tenho tratado e defendido a premente necessidade de uma PEC da Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva para sairmos deste escuro túnel do obscurantismo, tentarei alinhavar e mostrar qual foi a forma e estratégia com que os chilenos – também pela via democrática e popular – conseguiram chegar à sua Assembleia Constituinte.
Tal assunto se reveste de inestimável subsídio para as mulheres que são a maioria do eleitorado brasileiro, com mais de 7 milhões de eleitoras, mas ainda com apenas 30% de candidaturas que lhe são reservadas.
Comecemos elencando as gritantes diferenças históricas, territoriais e culturais para finalmente chegarmos na política e democracia.
Território. Enquanto nosso território tem mais 8.516.000km², o Chile tem apenas 756.950 Km², vale dizer, menos de um por cento do nosso imenso Brasil. Realmente esta faixa litorânea do Pacífico sul, tem um cumprimento de mais de 6 mil km, por uma largura média de 175 km, em que se destaca ao norte o deserto do Atacama – o mais seco do planeta – com suas cobiçadas reservas de salitre e cobre que atraíram a imigração europeia, notadamente a germânica e inglesa. Regiões inóspitas e geladas ao sul pela Antártida e se estendendo até Polinésia no Pacífico, onde estão as emblemáticas ilhas de Pascoa e Sala y Gomes.
“O país está espremido entre a Cordilheira dos Andes ao leste e o Oceano Pacífico no oeste”, diz o chileno Manuel Rolando Berríos Godoy, doutor em Geografia e professor da UNESP de Rio Claro.
Terremotos no Chile. 1730 – Cidade de Valparaíso – magnitude 8,7 – número de mortos não registrado; 1868 – província de Arica – magnitude 9,0 – 25 mil mortos; 1906 – cidade de Valparaíso – magnitude 8,2 – 3.800 mortos; 1928 – cidade de Talca – magnitude 7,6 – 225 mortos; 1939 – comuna de Chillán – magnitude 7,8 – 28 mil mortos; 1943 – cidades de Illapel e Salamanca – magnitude 8,2 – 30 mortos; 1960 – cidade de Valdívia – magnitude 9,5 – 2.000 mortos.
Esquema explicativo de terremoto no Chile
Mesmo assim, o avanço tecnológico das construções chilenas já dominou a técnica de construir grandes edificações seguras e à prova de tremores, tanto que possui uma das torres mais altas da América Latina, 74 andares, no centro de Santiago, com um moderno shopping center de vários andares.
O Chile disputa com a Argentina a produção dos melhores vinhos, graças a sua capacidade construtiva dos séculos 18 e 19, quando as famosas adegas chilenas foram enterradas a mais de sete metros de profundidade. Resistiram aos inúmeros cataclismos que o país já sofreu. Estes verdadeiros túneis subterrâneos foram construídos quando ainda não se dispunha de luz elétrica e a iluminação era pela chama betuminosa em que a fumaça aderindo na parede não contaminava o ambiente. A massa para ligar os milhões de tijolos empregados, eram feitas com clara de ovos de galinha. Quem já teve a oportunidade de fazer uma visita, a estas vinícolas, verá uma das maravilhas da arquitetura chilena.
População. Igualmente a nossa população de duzentos e doze milhões supera os 18 milhões de chilenos. Estima-se que apenas no ano 2050, a população chilena possa chegar aos 20 milhões (10% da nossa atual).
Esta população tem um histórico muito diferente da nossa herança lusitana e escravocrata da era colonial que gerou nossas diferenças tão acentuadas como na geografia.
Mas são os aspectos culturais, econômicos e políticos que o pequeno Chile nos dá bons exemplos. Nossas independências contam com dois séculos. Dos portugueses herdamos a coroa do Império, e nossa independência foi uma mera declaração de Príncipe Herdeiro D. Pedro I, mas os chilenos conquistaram a sua pelas armas.
Foram a primeira república sul-americana a aderir à OCDE, bem como mantêm vínculos com as demais organizações internacionais como ONU, OEA, CELAC, que a destaca pelo desenvolvimento humano, qualidade de vida, globalização, liberdade econômica e baixa corrupção.
Escrito está no primeiro artigo da nossa constituição, parágrafo único: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Porém, nossos últimos presidentes seguiram a tendência da radicalização ideológica fundando o Fórum de São Paulo em detrimento de maior entrosamento mundial, tão importante e fundamental por sermos um dos maiores produtores de alimentos, com perspectivas de nos tornarmos o maior na próxima década.
Considera-se que já há mais de 18 mil anos este território registrava a presença humana. Desde 10 mil anos que os Incas do norte se confrontavam em guerras de domínio com os nativos Mapuches do sul.
A partir da descoberta do Novo Mundo, os espanhóis se fixaram ao lado do Pacífico e os portugueses pelo Atlântico. A colonização espanhola durou três séculos até eclodir o clima geral de libertação, após a independência dos EUA e heróis como Bolívar, San Martin e Bernado O´Higgins, pelas armas, se tornarem os libertadores e pais das pátrias sul-americanas.
“O Chile é uma sociedade multiétnica e a maior parte da população pode reivindicar alguma ascendência europeia, principalmente espanhola (castelhano, andaluz e basco), mas também alemão, italiano, irlandês, francês, britânico, suíço e croata, em várias combinações. Um pequeno, mas influente grupo de imigrantes anglo-saxões, entre os quais galeses, irlandeses e ingleses, chegou ao Chile durante o período colonial. A imigração alemã começou em meados de 1800 e continuou até o século XX, sendo que as províncias de Valdivia, Llanquihue e Osorno, ao sul, mostram uma forte influência alemã. Além disso, há um número significativo de imigrantes e descendentes de povos do Oriente Médio, especialmente palestinos. Cerca de 800 mil ameríndios, principalmente mapuches, residem na região centro-sul. Os aimarás, atacamenhos e diaguitas podem ser encontrados principalmente nos do norte do Chile, em vales e oásis no deserto. A Ilha de Páscoa é a casa dos Rapa Nui, uma população indígena”. (Wikipédia)
Após a independência, o Chile, quiçá para cortar de vez o jugo e cultura espanholas, seu libertador O´Higgins, que estudara em Londres e tinha se identificado com os ideais de independência dos americanos, levou o Chile a aderir para o imperialismo britânico, preservando a oligarquia da elite já nativa do território colonial. Economicamente eram os latifúndios do sul com agricultura e pecuária e ao norte a exploração mineral, notadamente pelo salitre e cobre, commodities que ainda alicerçam a economia.
A economia e a política costumam andar juntas. No Chile, a política recebeu este temperamento guerreiro dos nativos araucanos, que amalgamou-se com britânicos e alemães para construírem um sistema político e partidário, onde as tendências ideológicas preponderam ao invés do nosso compadrio lusitano do fisiologismo e oportunismo que contaminam nossos arremedos de partidos sempre a se unirem ao “centrão” .
Em seu portentoso estudo sobre HISTÓRIA DA RIQUEZA NO BRASIL, GMT – Editores Ltda., 2017, pag. 321, JORGE CALDEIRA nos revela seu fantástico estudo, dos primórdios da nossa República:
“Enquanto os costumes antigos ressuscitavam até mesmo entre os republicanos paulistas, as intervenções de Rui Barbosa na economia abriam caminho para empresários e empreendedores locais. Nesse caso, a lei que conferiu aos cidadãos o poder de formar empresas sem autorização do governo, somada às granitas de crédito e a maior oferta monetária, provocaram uma mudança radical na dinâmica do setor privado. Atualmente, essa explosão ainda está sendo avaliada pelos econometristas. E o motivo de ainda haver divergências sobre os números é que, na época do Império, a desconsideração do desempenho do setor privado pelos dirigentes das políticas públicas era absoluta. Tanto quanto os costumes dos súditos analfabetos, tudo que se referia aos interesses do mercado interno era invisível para o governo imperial. Também por isso, os dados apresentados em seguida são construções recentes, mostrando tendências que foram por muito tempo ignoradas pelos historiadores habituados a lidar apenas com a documentação tradicional”.
Tanto lá, como aqui, é verdade que as tentativas e golpes de estado se sucederam. Todavia, entre nós o sistema partidário se descaracterizou por inteiro, que, no dizer de Modesto Carvalhosa: “No regime oligárquico pseudodemocrático como o nosso todo o poder emana dos partidos que formam o mosaico dos sucessivos governos do atraso, da injustiça, dos privilégios, da corrupção e da impunidade”. (UMA NOVA CONSTITUIÇÃO PARA O BRASIL)
Dos 150 países avaliados pela Transparência Internacional da Corrupção, o Chile está em 25º lugar mesmo antes do EUA que ocupa a 26º posição, ao passo que o Brasil aparece no humilhante 94º lugar. (IPC 2020).
Para termos comparativos, na tentativa de explicar o recém feito histórico dos chilenos de terem conseguido de forma democrática e tão rápida uma Assembleia Constituinte Exclusiva, com a façanha de composição precursora em nível mundial de 50% de mulheres, precisamos analisar e observar como o Povo Chileno enfrentou a ditadura de Pinochet e, agora, tenta o extremo libertário da igualdade de homens e mulheres. A verdade é que nesta cultura milenar de um povo multirracial, onde se destaca ser extremamente guerreiro, que ao invés dos demais países latino-americanos que modelaram suas forças armadas adotando o sistema francês, o Chile usou o modelo prussiano que derrotou Napoleão.
Generais do exército chileno: Gorostiaga, Lopetegui, Bulnes, Körner, Baquedano, del Canto, Cortes, Novoa. A derrota francesa (1870) fez mudar o padrão do exército chileno que passou a seguir o modelo prussiano, o que explica seus uniformes, disciplina, marcha e semelhanças com a cultura militar prussiana, como a utilização do capacete prussiano com ponta, onde, desde 1905, foi adotado o uniforme baseado no modelo alemão. (Wikipédia – Generais Chilenos)
As relações diplomáticas do Chile com o Brasil sempre foram cordiais, com trocas de honrarias e homenagens até com presidentes chilenos homenageados pelos nossos correios. Mesmo durante os regimes militares da décadas 60/80, estas relações não se desfizeram, bastando citar a Operação Condor.
A Operação Condor, formalizada em reunião secreta realizada em Santiago do Chile no final de outubro de 1975, é o nome que foi dado à aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de 1970 — Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai — para a realização de atividades coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, com o objetivo de vigiar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer desaparecer militantes políticos que faziam oposição, armada ou não, aos regimes militares da região.(Comissão da Verdade)
“Ser brasileiro em Santiago, em setembro de 1973, era uma condição de risco, e havia muitos nessa situação. Entre eles, conhecidos intelectuais e políticos brasileiros, como Fernando Gabeira, José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Herbert de Souza e a economista luso-brasileira Maria da Conceição Tavares – os últimos chegaram a colaborar com ministérios do governo de Salvador Allende em alguns projetos. Obrigados a sair do Brasil, encontraram no Chile uma experiência de socialismo democrático que parecia adequada aos seus ideais de esquerda. Porém, viveram lá o segundo golpe de Estado de suas vidas, e alguns não sobreviveram a ele“. (Vitor Farinellli – UOL)
Allende, um socialista, se elegeu pela coalização dos partidos de esquerda, conhecida como “via chilena para o socialismo”, que iniciou com a reforma agrária, nacionalização de bancos e empresas estrangerias bem como minas de cobre. Isso desagradou a elite econômica chilena, grandes grupos e corporações estrangeiras, que passaram a fazer oposição com apoio dos EUA, via CIA, e fomento de manifestações populares.
A ditadura militar de Augusto Pinochet foi um golpe que derrubou o Presidente Salvador Allende, eleito pelo voto, que governou o Chile entre 1973 e 1990. A ditadura foi liderada por uma junta militar presidida pelo general Augusto Pinochet. O colapso da democracia e a crise econômica ocorrida durante a presidência do democrata social Allende, foram justificativas usadas pelos militares para tomar o poder. A ditadura apresentou sua missão como uma “reconstrução nacional”.
O Presidente Allende se suicidou no Palácio de La Moneda após ser bombardeado pelos militares comandados por Pinochet.
Com o fim da ditadura, o Chile retornou à vida democrática e o presidencialismo seguiu como sistema de governo. O Congresso Nacional, composto de 38 senadores e 120 deputados, existe desde a independência em 1811. Os parlamentares são eleitos pelo voto distrital e não obrigatório, tem sua sede na cidade de Valparaíso, a 140 km de Santiago, onde fica o Palácio de La Moneda, que abriga a Sede da Presidência.
Com a eleição da primeira mulher chilena em março de 2006 a 2010 e 2014 a 2018, pois lá não existe reeleição, o Chile voltou a figurar com destaque no cenário internacional.
Verónica Michelle Bachelet Jeria (Santiago, 29 de setembro de 1951), uma médica e política chilena, foi a primeira presidente pro tempore da União de Nações Sul-Americanas, e a primeira encarregada da ONU Mulheres, agência das Nações Unidas para a igualdade de gênero. Terminou seu primeiro mandato com alta aprovação. Começou formando um ministério com igualitária participação de homens e mulheres.
Na verdade, o plebiscito e a eleição da nova constituinte chilena foi um trabalho metódico, planejado e pragmático da eficiente Bachelet para adaptar a nação aos novos tempos e conseguir, inclusive, estancar as barreiras conservadoras da exclusão da mulher da política sul-americana. Ela estava preparada e teve a determinação para chegar a este ideário libertador da mulher, assim como Margaret Thatcher na Inglaterra e Angela Merkel na Alemanha, que, como Bachelet, marcam novos tempos da ascendência da mulher na política.
A eleição para escolha dos membros da Assembleia Constitucional do Chile foi realizada entre os dias 15 e 16 de maio de 2021. Esta eleição foi convocada após 78% dos votantes chilenos terem escolhido este método para redigir a nova Constituição através de um plebiscito realizado em outubro de 2020, tese do Dep. Ricardo Barros, Líder do Governo.
Atual contexto político do Chile
Após protestos massivos terem abalado o país em outubro de 2019, chegou-se a um acordo a 15 de novembro de 2019 entre as várias forças partidárias chilenas para iniciar o processo para redigir uma nova Constituição. No caso do primeiro referendo ser aprovado (originalmente marcado para 26 de abril de 2020), uma eleição especial iria ser convocada para escolher os membros da Convenção Constitucional.
Esta foi a primeira vez na história que os cidadãos chilenos puderam votar nos membros do órgão criado para redigir a nova Constituição do Chile. Embora o sistema eleitoral adotados é inspirado no que é utilizado para eleição dos 155 membros da Câmara dos Deputados, o sistema também foi alvo de mudanças profundas. Pela primeira vez, 17 dos 155 membros foram reservados para os 10 povos indígenas reconhecidos pelo Chile. Também foi criado um mecanismo eleitoral para garantir o número igual de homens e mulheres na Convenção, sendo a primeira assembleia da história a ter o mesmo número de homens e mulheres.
“Os resultados eleitorais foram considerados surpreendentes e uma mudança drástica e inesperada do sistema político que emergiu após o fim da ditadura do General Augusto Pinochet em 1990. A maioria dos membros são provenientes de listas ou candidaturas independentes. A coligação de direita, Vamos pelo Chile, do presidente Sebastián Piñera, obteve o seu pior resultado de sempre ao conseguir pouco mais de 19% de votos e, acima de tudo, não conseguir obter 1/3 dos membros da Convenção Constitucional e assim não tendo poder para vetar as mudanças drásticas defendidas por movimentos sociais e partidos de esquerda. A coligação de centro-esquerda foi outra das grandes derrotadas da noite, ficando-se pelos 14% dos votos e a ver-se relegada para o quarto lugar. Por contrapartida, a coligação Aprovo Dignidade composta pelo Partido Comunista do Chile e pela Frente Ampla obteve um resultado histórico ao conseguir quase 18% dos votos e, por fim, a Lista do Povo (coligação de diversos movimentos sociais e candidaturas independentes de esquerda) conseguiu mais de 16% dos votos“. (Wikipédia)
Forçoso, pois, concluir que quando o POVO vai para a rua, os políticos se rendem e tremem de medo para atender o poder original das massas. Isso também já aconteceu aqui no Brasil (Lei da Anistia, Eleições Diretas, Ficha Limpa e último impeachment presidencial).
A proposta estava no parlamento chileno deste 2017, mas somente após o Povo Chileno tomar as ruas, que a conquista se realizou.
Em 2013, o Povo Brasileiro protestou e derrubou um governo, bastará o Povo discutir e assinar uma PEC (PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL) e voltar às ruas para que nosso inoperante parlamento, apesar de lá existirem bons parlamentares e boas propostas, acorde e coloque as barbas de molho.
Como no Chile, aqui as mulheres, por serem a maioria dos eleitores, devem continuar sua luta pela verdadeira igualdade. Quem viver verá.
* Nilso Robeu Sguarezi é advogado. Foi deputado constituinte em 1988