Em 11 de outubro de 1955 Carlos Lacerda retornava do exílio provocado pela sua participação em tentativas de golpe para evitar a eleição de JK e Jango, depois de ter um papel fundamental na crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas. Sua tradição como excelente orador e golpista em inúmeras tentativas fizeram com que ganhasse o apelido de o Corvo, uma imagem sinistra. No Aeroporto do Galeão, simpatizantes o aguardavam e o realismo macabro se fez presente com o cartaz: “Os moradores da Catacumba estão com Carlos Lacerda”.
A favela da Catacumba ficava ali às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, área nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro. O episódio é contado no ótimo livro “Samuel Wainer, o homem que estava lá”.
Em todas as épocas, não apenas os candidatos majoritários têm seguidores fanáticos. Minoritários barulhentos sempre imaginam serem maioria, por se relacionarem mais dentro das suas bolhas de preferência política, fator potencializado ao extremo na atual época das mídias sociais. É como uma figura de linguagem, uma metonímia política, onde se toma a parte pelo todo.
O histrionismo de Lacerda foi precursor, ainda no modo analógico, de um tipo de comportamento político que se tornou digital e com potencial de provocar danos irreparáveis à democracia. Por mais que se critiquem as instituições democráticas e muitos dos seus componentes, até hoje não apareceu maneira melhor de se organizar a sociedade com liberdade – é melhor preservá-la.
A mais precisa descrição das vozes soturnas anti-democráticas e sua atual forma de atuação, semelhante em alguns países, e disseminada por Steve Bannon, está no imprescindível livro “Os Engenheiros do Caos”, de Giuliano da Empoli, de 2019. Ele mostra a dinâmica onde “cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um novo escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática.”
E prossegue adiante: “Pela primeira vez depois de muito tempo, a vulgaridade e os insultos não são mais tabus. Os preconceitos, o racismo e a discriminação de gênero saem do buraco. As mentiras e o conspiracionismo se tornam chaves de interpretação da realidade.” Soa familiar?
Descobriu-se que a raiva era uma fonte de energia colossal. O engajamento nas redes para manter seus usuários conectados, deve, sobretudo, fazer as coisa de maneira que eles se enervem, sintam-se em perigo ou que tenham medo. A versão do mundo que cada um vê é literalmente invisível aos olhos dos outros. Não são mais nossas opiniões sobre os fatos que nos dividem, mas os fatos em si. A advertência do político norte-americano Daniel Moynihan, já não vale mais: “Cada um tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos.”
Surgiu aí a expressão cínica “verdades alternativas”, utilizadas, à larga, na promoção das chamadas democracias iliberais, populistas, onde não há mais quarteladas das antigas, nem ditaduras explícitas como Coreia do Norte, China, Cuba e Arábia Saudita, mas intervenções manipuladoras na justiça, no Parlamento, na imprensa e – muito – nas mídias sociais, perpetuando ditadores disfarçados. À direita e à esquerda, acontece na Hungria, na Polônia, na Rússia, na Nicarágua e na Venezuela. Esse estilo – ainda bem – começou a desmoronar com a derrota de Trump, que tentou alegar até fraude eleitoral para não aceitar a derrota, mas ali as instituições são fortes. Que o desmonte prossiga no resto do mundo, inclusive aqui, onde vozes das catacumbas gostam de ameaçar a democracia.