Você ainda ouve Chico Buarque, perguntou um amigo? Logo percebi o alcance da indagação.
O clima político ultrapolarizado produz a asfixia da própria política enquanto campo de ação social, enfraquecendo o que poderia oxigená-la, a arte, em todas as suas ricas expressões. A arte é forma estética. A política também.
Situações dramáticas como as vividas nos dias de hoje podem ser apreendidas de maneira menos enviesada, rememorando letras de músicas, sátiras, romances, filmes, crônicas. O acervo artístico como produto cultural é registro e parâmetro dos níveis de consciência (e resistência) possíveis em face dos absurdos.
A arte sofisticada transcende ao tempo histórico original. Projeta-se em outros territórios imaginários e geográficos. Chico Buarque tornou-se universal com as geniais canções “O que será?”, “Cálice”, “Apesar de você”, entre tantas outras criações literárias. Cada vez mais atuais em momentos de horror oficial.
A arte expressa o patrimônio na reprodução social, ressignificando-a em muitos sentidos. Sim, ela expressa o retrocesso como parte da indústria cultural e do kitsch típicos dos sabadões e domingões televisivos. Daí e por isso a arte é também necessidade e urgência pois expressão da cultura acumulada e da capacidade crítica, fatores decisivos para avanços na efetividade da democracia.
A negação de toda barbárie passa pelo esclarecimento, vale dizer, por questionamentos à luz do legado de inteligência já construído. Chico Buarque, entre muitos outros, faz parte desse panteão dos grandes brasileiros.
Quando a estética da política promove e enaltece o quadro social de terror, com nítidos contornos repressivos, privilegiando ataques aos intelectuais, às Universidades, aos artistas, à cultura, atenta-se contra o imaginário social. Atentado despotencializador de olhares e vozes através dos quais formas e modos de vida compatíveis com o pluralismo multicultural crescente se expressam.
O fato de artistas possuírem inclinações políticas por este ou aquela ideologia, partido ou crença não justifica o cancelamento de suas biografias. Chico Buarque, como é sabido, apoiou e apoia Cuba e o lulopetismo. Pode-se discordar ou não aceitar (?) suas escolhas, mas daí à desconsideração da sua inesgotável riqueza estética tem-se a diferença entre intolerância aceitável e obscurantismo existencial.
O argumento em defesa de intelectuais mortos e vivos não é ideológico. Nelson Rodrigues, Gilberto Freire, autores tomados como do campo liberal conservador são tão importantes quanto Dias Gomes e Darcy Ribeiro, considerados socialistas. Todos fazem parte de nosso arsenal cultura da memória nacional.
O assassinato da memória somente pode atender a propósitos totalitários.